quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Apologia à barbárie

Neste artigo, Carolina Raquel da Veiga comenta as barbaridades ditas pelo comentarista da RBS, Luiz Carlos Prates, em relação aos 30 anos da Novembrada. Antes de ler, recomendamos que assista ao vídeo com o comentário de Prates clicando aqui.

Carolina Raquel da Veiga*

Estou postando esse vídeo, mas sinto vergonha em fazê-lo. Já o assisti há algum tempo e desde então, seu conteúdo me incomoda.Como pode um comentarista de um dos principais telejornais de Santa Catarina, da emissora mais assistida do estado defender publicamente, justo no dia em que se comemora 30 anos de uma das maiores manifestações contra a opressão militar já ocorrida em Santa Catarina, uma época de violências contra a sociedade?

A Novembrada ficou conhecida como o dia em que Florianópolis enfrentou a Ditadura Militar. Período esse que para o comentarista da RBS, Luiz Carlos Prates, proporcionou o maior crescimento nacional com estradas rasgando o Brasil, universidades multiplicadas e ciência e tecnologia começando para valer.

Em 30 de novembro de 1979, milhares de pessoas tomaram as ruas centrais da capital para manifestar o repúdio ao regime opressor, resultando na prisão de sete estudantes universitários da Universidade Federal de Santa Catarina. O estopim das manifestações organizadas pelo Diretório Central dos Estudantes da UFSC foi a visita do general Figueiredo, ditador da vez. João Baptista Figueiredo veio a Santa Catarina para participar das homenagens ao Marechal Floriano Peixoto, que governou com mãos de ferro a antiga Desterro – hoje Florianópolis (cidade de Floriano) no final do século XIX, aprisionando contrários ao seu governo.

Prates afirma que a “Novembrada foi uma reação de perdedores, de fracassados” e que “o general Figueiredo nos ensinou o caminho da verdadeira luta e democracia”. Será que o grande reacionário jornalista Luiz Carlos Prates nunca leu o livro: “Brasil: Nunca Mais”, que traz depoimento de vítimas torturadas por militares durante o período de ferro? Segue trecho do livro:

“A estudante Dulce Chaves Pandolfi, 24 anos, foi obrigada também a servir de cobaia no quartel da Rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, de acordo com petição anexada aos autos em 1970:
(…) Na Polícia do Exército, a supte. foi submetida a espancamento inteiramente despida, bem como a choques elétricos e outros suplícios, como o “pau-de-arara”. Depois conduzida à cela, onde foi assistida por médico, a supte foi, após algum tempo novamente seviciada com requintes de crueldades numa demonstração de como deveria ser feita a tortura; (…)

Em seu depoimento na Justiça Militar, Dulce reitera a denúncia: … que no dia 14 de outubro foi retirada da cela e levada onde estavam presentes mais de vinte oficiais e fizeram demonstração de tortura com a depoente; (…)”

Este é apenas um dos vários relatos do livro, que incluem mortes nas prisões militares, sequestros e desaparecimento de presos políticos. As formas e os instrumentos praticados na tortura também estão descritos com riqueza de detalhes, como a “Cadeira do Dragão”. Segue trecho:

“A ‘Cadeira do Dragão’ de São Paulo
(…) sentou-se numa cadeira conhecida como cadeira do dragão, que é uma cadeira extremamente pesada, cujo assento é de zinco, e que na parte posterior tem uma proeminência para ser introduzido um dos terminais da máquina de choque chamado magneto; que, além disso, a cadeira apresentava uma travessa de madeira que empurrava as suas pernas para trás, de modo que a cada espasmo de descarga as suas pernas batessem na travessa citada, provocando ferimentos profundos (…)

(…) também recebeu choques elétricos, cadeira do ‘dragão’ que é uma cadeira elétrica de alumínio, tudo isso visando obtenção de suas declarações (…)

(…) despida brutalmente pelos policiais, fui sentada na ‘cadeira do dragão’, sobre uma placa metálica, pés e mãos amarrados, fios elétricos ligados ao corpo tocando língua, ouvidos, olhos, pulsos, seios e órgãos genitais. (…)”.

Após assistir o vídeo e ouvir as frases: “desde quando fomos proibidos de ir e vir” e “o Brasil andou para trás de lá para cá”, conclui: a liberdade existia para aqueles que foram cúmplices dos crimes aplicados contra aqueles que foram assassinados, espancados e seqüestrados apenas por pensar diferente e por lutarem por um país mais justo e igualitário. Quanto ao crescimento da economia brasileira, ele se deu graças ao crescimento das desigualdades sociais, do número de pobres, pela preferência ao ensino técnico, especializado em construir operários para as multinacionais que exploram ainda hoje o país, em detrimento ao social. Crescimento esse onde o ensino de qualidade se transformou em artigo de luxo e as universidades públicas, que Prates com tanto orgulho diz que se multiplicaram, transformaram-se em escolas que só os filhos da grande burguesia podiam frequentar… Esta realidade continua se repetindo.

De lá para cá o Brasil não andou para trás. Casos de corrupção foram revelados justamente porque jornalistas finalmente puderam exercer sua profissão com um pouco mais de liberdade. À época, seriam torturados e exilados, como também aconteceu com aqueles que desejavam gritar as mazelas da população e as injustiças da Ditadura Militar através da arte, da poesia e da música. De lá para cá o Brasil vem construindo sua liberdade, infelizmente agora cerceada pela “Ditadura do capital e da Globalização”.

João Batista Figueiredo não foi um herói, como disse Prates, assim como nenhum dos demais comandantes militares que tomaram o Governo Federal. Mas sim, mais um líder da quadrilha. Apesar de conceder a anistia aos exilados políticos pelo AI-5, Figueiredo perdoou os crimes políticos exercidos pelos órgãos da segurança nacional: as torturas, assassinatos e sequestros cometidos pelos militares foram perdoados.

Apesar da promessa de manter a “mão estendida em conciliação” e de jurar “fazer deste país uma democracia”, durante os seis anos em que comandou o país, a dívida externa nacional ultrapassou os 100 milhões de dólares e os juros alavancaram de 45% ao mês a 230% ao longo de todo o período. Foi substituído por Tancredo Neves, eleito por “eleições diretas”, que não chegou a governar, sendo substituído pelo vice José Sarney, que dispensa comentários.

Algumas das frases daquele que para Prates “ensinou o caminho da verdadeira luta e democracia” ao povo brasileiro:

“Prefiro cheiro de cavalo do que cheiro de povo”.
“AI-5? Quem é esse menino?”.
“Uma coisa que nunca entendi é porque todo artista, esse tal de Caetano Veloso por exemplo, tem de ser dessa tal de esquerda”.

Luiz Carlos Prates e a emissora que ele representa devem desculpas à população. Às centenas de homens e mulheres que tiveram suas vidas marcadas pela ditadura militar. Às mulheres que foram violentadas, que sofreram abortos, que ficaram viúvas, que perderam filhos, que perderam a esperança e vivem hoje com medo do desconhecido. Às crianças órfãs. Aos homens torturados e violentados. Àqueles expulsos do país, que sofreram com a saudade e hostilidade do exterior. Devem desculpas aos familiares dos mortos e desaparecidos, famílias estas que ainda esperam seus entes queridos entrarem pela porta de casa.

RBS e Prates, o Brasil merece desculpas!

Carolina Raquel da Veiga é estudante de jornalismo, membro da diretoria da Associação Arco Íris de Joinville e militante do PSOL.

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