sexta-feira, 17 de dezembro de 2010
Plínio comenta aumento de salário dos parlamentares
terça-feira, 7 de dezembro de 2010
Debate sobre a ação policial no Rio de Janeiro
terça-feira, 30 de novembro de 2010
Não haverá vencedores
Eles estão com armas nas mãos e as cabeças vazias. Não defendem ideologia. Não disputam o Estado. Não há sequer expectativa de vida. Só conhecem a barbárie. A maioria não concluiu o ensino fundamental e sabe que vai morrer ou ser presa.
As imagens aéreas na TV, em tempo real, são terríveis: exibem pessoas que tanto podem matar como se tornar cadáveres a qualquer hora. A cena ocorre após a chegada das forças policiais do Estado à Vila Cruzeiro e ao Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro.
O ideal seria uma rendição, mas isso é difícil de acontecer. O risco de um banho de sangue, sim, é real, porque prevalece na segurança pública a lógica da guerra. O Estado cumpre, assim, o seu papel tradicional. Mas, ao final, não costuma haver vencedores.
Esse modelo de enfrentamento não parece eficaz. Prova disso é que, não faz tanto tempo assim, nesta mesma gestão do governo estadual, em 2007, no próprio Complexo do Alemão, a polícia entrou e matou 19. E eis que, agora, a polícia vê a necessidade de entrar na mesma favela de novo.
Tem sido assim no Brasil há tempos. Essa lógica da guerra prevalece no Brasil desde Canudos. E nunca proporcionou segurança de fato. Novas crises virão. E novas mortes. Até quando? Não vai ser um Dia D como esse agora anunciado que vai garantir a paz. Essa analogia à data histórica da 2ª Guerra Mundial não passa de fraude midiática.
Essa crise se explica, em parte, por uma concepção do papel da polícia que envolve o confronto armado com os bandos do varejo das drogas. Isso nunca vai acabar com o tráfico. Este existe em todo lugar, no mundo inteiro. E quem leva drogas e armas às favelas?
É preciso patrulhar a baía de Guanabara, portos, fronteiras, aeroportos clandestinos. O lucrativo negócio das armas e drogas é máfia internacional. Ingenuidade acreditar que confrontos armados nas favelas podem acabar com o crime organizado. Ter a polícia que mais mata e que mais morre no mundo não resolve.
Falta vontade política para valorizar e preparar os policiais para enfrentar o crime onde o crime se organiza -onde há poder e dinheiro. E, na origem da crise, há ainda a desigualdade. É a miséria que se apresenta como pano de fundo no zoom das câmeras de TV. Mas são os homens armados em fuga e o aparato bélico do Estado os protagonistas do impressionante espetáculo, em narrativa estruturada pelo viés maniqueísta da eterna “guerra” entre o bem e o mal.
Como o “inimigo” mora na favela, são seus moradores que sofrem os efeitos colaterais da “guerra”, enquanto a crise parece não afetar tanto assim a vida na zona sul, onde a ação da polícia se traduziu no aumento do policiamento preventivo. A violência é desigual.
É preciso construir mais do que só a solução tópica de uma crise episódica. Nem nas UPPs se providenciou ainda algo além da ação policial. Falta saúde, creche, escola, assistência social, lazer.
O poder público não recolhe o lixo nas áreas em que a polícia é instrumento de apartheid. Pode parecer repetitivo, mas é isso: uma solução para a segurança pública terá de passar pela garantia dos direitos básicos dos cidadãos da favela.
Da população das favelas, 99% são pessoas honestas que saem todo dia para trabalhar na fábrica, na rua, na nossa casa, para produzir trabalho, arte e vida. E essa gente -com as suas comunidades tornadas em praças de “guerra”- não consegue exercer sequer o direito de dormir em paz.
Quem dera houvesse, como nas favelas, só 1% de criminosos nos parlamentos e no Judiciário…
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MARCELO FREIXO, professor de história, deputado estadual (PSOL-RJ), é presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
Fonte: Artigo publicado em 28 de novembro de 2010, na seção Tendências e Debates da Folhas de São Paulo
sexta-feira, 19 de novembro de 2010
‘Lula consolidou o capitalismo e instrumentalizou o Estado no Brasil’
12-Nov-2010
Com a confirmação no segundo turno da eleição de Dilma Rousseff, o país se prepara para viver a etapa pós-Lula, o pai dos pobres que deixou a presidência com consagradora aprovação, inclusive daqueles que um dia ameaçaram abandonar o país caso o operário chegasse ao Planalto.
Para analisar a vitória petista e o que se pode esperar do futuro brasileiro, o Correio da Cidadania entrevistou Ildo Sauer, do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP e ex-diretor de Petróleo e Gás da Petrobrás na gestão de Lula até 2007. Para explicar como Lula "consolidou a hegemonia do capitalismo sobre as relações sociais e de existência", vai às vísceras da política nacional, desnudando o seu funcionamento no "pós-mensalão" e a partilha das riquezas nacionais entre os mesmos setores privilegiados de sempre.
Para sustentar tamanha metamorfose em relação ao projeto original petista, Ildo aponta como Lula soube instrumentalizar o aparelho estatal, avalizando o apoderamento da máquina pública, a partir de inusitados formatos, por representantes de grandes grupos econômicos. "Entregar de 2,6 a 5,5 bilhões de barris de petróleo e uma hegemonia tecnológica do núcleo da Petrobrás ao Eike, sem nenhuma resistência, foi algo brutal contra o interesse público. Portanto, são vários formatos de privatização".
Ildo faz um importante alerta: a ‘nova cartada’ na ‘partilha’ do patrimônio público vincula-se ao Pré-Sal, a partir do ‘poder autocrático e unilateral do presidente’, ao lado da desmobilização e cooptação de grande parte do movimento social. Situação que remeteria a uma mistura entre os processos vistos no México - onde o PRI (Partido Revolucionário Institucional), que ficou no poder entre 1917 e 1994, instrumentalizou a riqueza do petróleo - e na Argentina - com um sindicalismo na gaveta do Estado, cujo papel se restringe a dar legitimidade social ao governo, que, em troca, atira os restos do banquete em forma de assistencialismo.
Apesar de lamentar seu pessimismo ao final da conversa, e como alguém que participou diretamente da gestão Lula, o engenheiro não fez concessões para descrever as engrenagens da política brasileira, inclusive desvelando a futura esterilidade da Lei da Ficha Limpa. Terminou com uma autocrítica de quem partilhou dos sonhos dos anos 80.
Correio da Cidadania: Como encarou o período eleitoral, os debates que foram levados a cabo, culminado com a vitória de Dilma Roussef nessas eleições?
Ildo Sauer: De certa forma, a campanha eleitoral acabou sendo resolvida em parte pela longa metamorfose pela qual o governo Lula passou. Logo em seu início, quando liderava um governo hegemonicamente do PT, veio a Carta aos Brasileiros, a fim de garantir algo que era razoável – estabilidade econômica, tranqüilidade social, pois se esperava um processo de profundas mudanças por parte dos mercados. Uma carta que, portanto, tornava o governo aparentemente aceitável para alguns segmentos como estratégia de transição.
Evidentemente, todo mundo concordava com a necessidade de estabilidade da moeda, redução do processo inflacionário, já que o sistema capitalista de produção ainda seria hegemônico de qualquer maneira e por longo tempo, e isso tinha de ser mantido. Mas progressivamente, após 2003, 2004 e 2005 passarem tranqüilos, apareceu a ironia de o sucesso do Lula ser o anti-Lula, o avessso de si mesmo, o que foi percebido pelo mercado, pelo sistema financeiro internacional e pela burguesia nacional. Então, o anti-Lula, que de fato residia dentro do Lula, garantiu a estabilidade, sendo seu próprio fiador, à medida que revelou como líder aquilo que alguns já tinham percebido em seu entorno, mas que não estava claro: o partido passou a ser secundário, e a figura carismática de Lula ficou como fiadora das expectativas da burguesia, ao mesmo tempo em que era profundamente donatário e depositário das esperanças do processo construído ao longo de décadas em torno do PT, da mudança.
O processo que ele conduziu foi o de garantir as expectativas de grande retorno ao capital financeiro, via juros, aparelhamento das empresas públicas, BNDES, para manter a taxa de investimento, numa transformação da estrutura produtiva brasileira que se manifestou em vários campos hegemônicos. Criou-se uma petroleira brasileira que faz sombra à Petrobrás – a OGX de Eike Baptista; a petroquímica ficou em torno do grupo Odebrecht; nas telecomunicações, após uma disputa quase de faroeste, com espionagem, dois ministros envolvidos, fundos de pensão, terminou por hegemonizar o grupo Telemar, encastelado no grupo Jereissati e Andrade Gutierrez, com a coincidência, ou não, de seu principal executivo ser amigo de infância da nova presidente; nas obras de infra-estrutura, o BNDES consolidou outros grupos econômicos com hegemonia no Brasil e exterior, nas áreas de agronegócio, carnes, frigoríficos. Há a Vale, que vinha do governo FHC, mas no fundo o Lula criou um monte de Vales; instrumentalizou os fundos de pensão, as estatais, o BNDES e outros bancos para financiar tais ações. E mais ainda: hegemonizou um protagonismo na África, América Latina, de grupos econômicos como vendedores de equipamentos, obras de infra-estrutura, hidrelétricas, rodovias e outros projetos financiados pelo BNDES. Uma espécie de sub-imperialismo.
Com isso, a agenda do PSDB - a chamada social-democracia que na prática implementou todos os cânones do neoliberalismo hegemônico dos anos 90 - foi seqüestrada pelo Lula. Lula seqüestrou a agenda da burguesia, mantendo e ampliando os espaços abertos pelo governo tucano, e ao mesmo tempo se manteve depositário da esperança de um processo longamente construído.
Assim, nestas eleições, havia pouco espaço para uma candidatura legitimamente de esquerda ser ouvida pelas bases, pois ainda há toda essa herança construída de esperança e transformação, ainda formalmente depositada pela população no PT. Isso é demonstrado pelo voto. De onde veio a grande vitória do governo? De regiões que antigamente eram chamadas pelo depreciativo nome de grotões. Mas hoje não existe esse tipo de coisa na democracia, os votos têm o mesmo valor.
É bom observar tais ondas da percepção política. Na ditadura, o MDB, que liderou a resistência eleitoral a ela, se tornou hegemônico nos grandes centros urbanos, progressivamente encurralando a ARENA a regiões periféricas. Veio o PT e o solavanco da social-democracia, varrendo o PMDB pra periferia e tomando seu espaço nos centros urbanos. Agora, é interessante ver o misto: a hegemonia do PT voltou a essas regiões periféricas, com menor grau de desenvolvimento e acesso ao processo de consumo e renda.
Enquanto isso, criou-se nos grandes centros a onda verde, do discurso ambiental, de sustentabilidade, mas sem conteúdo fortemente social, problema básico do país. E ao mesmo tempo, veio o ressurgimento do discurso conservador - numa social-democracia, do ponto de vista teórico, expresso pelo PSDB. No limite do pouco que PT e PSDB expressam programaticamente, o PT em tese é social-democrata, mas muito mais operador da máquina – levou-nos a um discurso um pouco mais populista contra outro um pouco mais elitista, com pequenas nuances na forma de abordar o Estado. Não vejo muita diferença entre privatizar uma empresa ou instrumentalizá-la em favor dos interesses privados. Portanto, nesse sentido, os projetos são parecidos, tanto que não geraram entusiasmo.
Correio da Cidadania: Os votos nulos, brancos e abstenções nesta eleição são significativos deste quadro que o senhor ressalta, de mais semelhanças do que diferenças entre os blocos de poder representados por PT e PSDB?
Ildo Sauer: Sim, é importante notar, para simplificar essa análise inicial: os votos brancos, nulos e abstenções atingiram 28%, dentro de um eleitorado de 135 milhões. O candidato que ficou em segundo, teve 32%; 32 mais 28, já se vão 60%, enquanto os restantes 40% ficaram com a candidata vencedora. De modo que esse é o quadro resultante da longa metamorfose do projeto que nasceu socialista e progressivamente virou gestor dos interesses da burguesia nacional, do setor financeiro, industrial, do setor contratista de obras públicas, expressos no Brasil e no exterior. A grande diferença para o PSDB é que o PT ainda conta com a enorme confiança e esperança dos setores mais distantes, das cidades mais periféricas e mais pobres. O futuro mostrará, no entanto, as semelhanças entre ambos os partido, à medida que o debate evoluir e isso for decantado, com a transparência e capacidade de mobilização aparecendo. Os movimentos sociais têm uma clara identificação histórica, assim como as regiões que citei, com o PT. O movimento ambiental se ancorou na Marina, mas se dividiu. Esse é o quadro brasileiro.
Para definir, o governo Lula foi aquele que consolidou as relações sociais de existência e de trabalho capitalistas com a hegemonia capitalista no país. Até Lula chegar ao poder, havia a dúvida se aqui poderia nascer um experimento de caráter social-democrata, mas profundamente transformador, que apropriasse socialmente os excedentes econômicos provenientes das rendas, com controle público sobre o petróleo, telecomunicações, potenciais hidráulicos, sobre tudo que é patrimônio da nação, inclusive a terra, cujo resultado econômico seria apropriado para fins públicos. Mais do nunca, vemos uma privatização e internacionalização da terra; ao invés de fazermos a reforma agrária, nós estamos internacionalizando cada vez mais o agronegócio e o acesso à terra.
Portanto, o governo Lula foi o que consolidou o capitalismo no Brasil, gerando a tal falta de diferença na campanha.
Era nítido que todos procuravam mostrar quem tinha feito mais disso ou daquilo no passado. Mas não se discutiu a reforma da educação, necessária, com conceito e amplitude, horizontalização; não se discutiu a reforma agrária, que ficou escondida; não se discutiu a reforma urbana, a questão da moradia, do planejamento, abarcando onde as pessoas vivem, trabalham, circulam, enfim, a mobilidade de um transporte público de qualidade; não se discutiu a questão da reforma da saúde, e não há um brasileiro que queira estar submetido ao nosso sistema de saúde público, muito bem concebido e mal implementado. Ninguém deseja circular nos transportes públicos nas grandes metrópoles; ninguém acredita que a proteção ambiental hoje, da qualidade do solo, ar e água nas cidades e em termos globais, seja aceitável; ninguém está satisfeito com o volume de investimento em ciência, tecnologia e pesquisa.
E, no entanto, o país parece feliz, o que é um paradoxo. De onde vem isso? Creio que da pequena sensação de bem estar, promovida por uma conjuntura econômica, externa e interna, favorável.
Com a situação pós 2ª. Guerra, a visão cepalina da economia, de Celso Furtado e tal, denunciava o subdesenvolvimento em parte como produto da deterioração dos termos de troca, em que a produção primária – essencialmente minérios, agricultura –, por ser de baixo grau de manufatura, exportada pelos países latinos, se defrontava com o enorme valor atribuído às importações de produtos de maior conteúdo tecnológico e industrializados.
Houve uma reversão desse processo comandada a partir do dinamismo da economia chinesa, que passou a ter a necessidade do afluxo de alimentos, matérias-primas etc., para poder incorporar 40, 50 milhões de chineses todos os anos ao processo modernizado de produção, saindo da atividade camponesa, braçal, de baixo nível de apropriação energética, para o nível de produção industrial urbanizada. Portanto, acho que essa situação da China e da Ásia comandou tal transição, fazendo sua revolução industrial e urbana, iniciada nos anos 70, com uma grande quantidade de empresas estatais planejando estrategicamente e implementando. Na China, a renda da terra não existe. Os solos urbano e rural pertencem ao Estado. Assim, o preço da terra e da moradia, como custo de reprodução da força de trabalho, são bem menores, propiciando o acúmulo de enormes excedentes.
O dinamismo chinês, e em parte indiano também, permitiu, mesmo com a crise de 2008 que afetou Europa e EUA, que não se afetasse a valorização progressiva dos produtos primários brasileiros. Porém, ao mesmo tempo, assistimos à deterioração da nossa balança de pagamentos, porque a taxa de câmbio é muito valorizada em função da alta taxa de juros, devido à necessidade de atrair dólares para nossas reservas – as quais, por si só, já custam muito, pois implicam em ampliação da dívida pública interna para a compra e manutenção dessas reservas, com um custo de 12% ao ano sobre os 270 bilhões de dólares de reservas. A dívida pública não pára de crescer desde o governo FHC, já tendo alcançado R$ 2,2 trilhões, parcela significativa do PIB, de maneira que tal quadro deixa a preocupação com a desindustrialização futura.
De qualquer maneira, tal período de prosperidade comandado por essa conjuntura internacional foi determinante para a pequena sensação de bem estar, que permitiu dar um pouquinho mais para os que nada tinham, e muito mais para aqueles que já tinham muito, configurando a partilha do governo Lula, consolidando definitivamente as relações sociais capitalistas e abafando a expectativa de um movimento social que propunha outro quadro. É isso que foi revelado. O discurso tradicional da esquerda foi seqüestrado, e de certa forma também foi seqüestrada a prática da direita. E o Lula, com uma mão de cada lado, emplacou sua candidata, ainda que de forma muito mais apertada do que podia supor a dita popularidade de seu governo.
Assim, o que vejo no próximo governo é o aprofundamento do capitalismo nessa trajetória e, a partir daí, talvez, um espaço para o novo debate. É a minha percepção.
Correio da Cidadania: Portanto, Dilma levará adiante o legado de Lula, reforçando as tendências neoliberais, como a continuidade da política econômica, ao lado das tendências sociais/assistenciais do governo Lula, com eventual ampliação do Programa Bolsa Família.
Ildo Sauer: É muito claro. Mais assistencialismo, mais Bolsa Família, quando o caminho necessário para mudar a sociedade é criar autonomia, promover independência, que só se faz com as reformas da educação, urbana, da mobilidade, agrária, da infra-estrutura... Falo reforma, não revolução; reestruturar o que existe, dando novos sentidos, direção e conteúdo.
Como o produto social é único no PIB, é preciso escolher em que direção vão os recursos, que caminho teremos. E o que está aí é mais do mesmo. Grande parte da poupança é canalizada pelos bancos públicos, e muito pouco se reverte em investimento público, como se viu, por exemplo, no programa Minha Casa Minha Vida. Todos reconhecemos a enorme carência da habitação, mas não só isso. Além de casa, as pessoas precisam de transporte, escola, morar menos distantes do trabalho... A reforma urbana tem de ser mais ampla.
E o que esse programa engendrou? Um enorme movimento de especulação imobiliária, em que a renda do solo urbano acabou enriquecendo pequenos grupos especuladores. E mais ainda: hoje temos uma longa ironia sobre a promessa de ‘minha vida’ e ‘minha casa’. O que se criou? Dinheiro dos fundos públicos, dos fundos de garantia, do FAT, que são poupanças mandatórias da força de trabalho e que recebem uma remuneração abaixo do valor capitalista, de 3% ao ano de juros sobre o fundo de garantia, sendo apropriado pela Caixa, que empresta esse dinheiro muitas vezes a empresas estrangeiras, muitas das quais fracassaram no mercado imobiliário dos EUA e agora estão aqui. Elas tomam esse dinheiro, compram a força de trabalho dos trabalhadores, construindo a casa com a força de trabalho e a poupança deles, com mediação dos bancos e lucro enorme, terminando por criar uma dependência de 20, 30 anos do trabalhador com as prestações sobre aquilo que foi uma valorização extraordinária do capital originalmente do próprio trabalhador, que o poupou compulsoriamente via fundo de garantia.
Nesse caminho, o que houve? A especulação do solo urbano, que explodiu de preço, um sobrepreço enorme no custo do trabalho incorporado aos insumos e mão-de-obra. Aí se expressa o verdadeiro caráter capitalista desses projetos ditos sociais. Há outros modelos, desde os mutirões, cooperativas e uma estrutura planejada, com o planejamento urbano retomado da localização urbana em relação à escola, trabalho, planejando também a mobilidade.
De repente, isso permitiria não soltar da garrafa com tanta força o espírito da especulação e da acumulação quase primitiva sobre o solo urbano e a construção. Digo isto pra mostrar como projetos que ancoraram grande parte da aprovação ao governo são na verdade mais do mesmo, significando cada vez mais acumulação capitalista para quem controla os meios. E, claro, enquanto a economia continuar crescendo, haverá uma sensação de bem estar.
Podemos dizer que temos um enorme peleguismo político, para não chamar de populismo, paternalismo, agora maternalismo. A única solução é a busca de um grande debate de projeto nacional, sobre quais as propostas concretas para as reformas citadas anteriormente, os planos de proteção ambiental e, acima de tudo, para o setor do mais extraordinário excedente econômico: as rendas do petróleo e o setor de energia, temas varridos pra baixo do tapete, que só voltaram à campanha após provocações de gente externa, que mostrou claramente que o rei estava nu, pois ambos se acusavam de privatistas e ambos estavam corretos.
O governo FHC iniciou a entrega do petróleo como um todo, dando razão a ambos em suas acusações – e não se pode diferenciar o petróleo do Pré-Sal daquele das demais camadas, pois são qualitativamente pouco distintos, com diferença raramente acima de 10% em seu valor; portanto, tanto faz 60 ou 70 dólares no preço do barril, pois de toda forma são valores astronômicos. O governo Lula exerceu por muito mais tempo, e talvez com mais gosto, o modelo de concessões criado por FHC, e no final propôs uma mudança já obsoleta, a da partilha, ao invés de um novo modelo.
O que está no horizonte (aliás, a grande ameaça política que vejo ao país)? Se olharmos as experiências de México e Argentina, vemos dois paradigmas que inspiram cautela com o futuro. Se houver um crescimento econômico, a tendência é que a "pax lulensis", da mão direita grande e esquerda pequena (mas que afaga o coração e a consciência dos mais humildes com redistribuição), se mantenha e o capitalismo floresça no Brasil. Se houver crise, o governo talvez lance mão de um recurso que remete à história mexicana... O México fez uma revolução muito sangrenta no início do século passado, que se institucionalizou no chamado processo da Constituição de 1917; em 1938, a nacionalização do petróleo e a criação da Pemex passaram a gerar um fluxo de excedente econômico comandado pelo Estado e pelo PRI, que o permitiu ficar no poder de 1917 a 1994, quando, por corrupção, exaustão e crise econômica, acabou varrido por um governo mais conservador ainda. A partilha do excedente econômico do petróleo mexicano é algo que está no horizonte e merece atenção, porque o Projeto de Lei que tramita no Congresso delega ao presidente ouvir do conselho nomeado também por ele a definição sobre quase tudo que será feito; o ritmo em que o Pré-Sal será colocado em partilha, quem vai participar do processo e quem vai dirigir tudo.
Nesse sentido, a experiência mexicana é o exemplo de como a apropriação do lucro do petróleo, comandada pelas instâncias do governo, permitiu uma partilha entre as elites, fortalecendo-as e mantendo-as no poder. Ao mesmo tempo, temos um movimento sindical no Brasil que perdeu seu rumo classista histórico; teve um período de discurso socialista de enfrentamento ao capitalismo, mas busca hoje a conciliação, à semelhança da Argentina, onde a principal tarefa das grandes centrais e sindicatos - que se enfrentam mutuamente, mas se abrigam no governo, que lhes dá recursos, espaço político, mantendo a corrente sindical ativa - é conferir uma aura de legitimidade social aos governos.
Portanto, se olharmos as duas experiências, podemos vislumbrar a enorme dificuldade, mesmo em situações de crise daqui pra frente, que a esquerda brasileira terá em se reorganizar, pois está claro que o atual governo não é mais de esquerda; seqüestrou boa parte do discurso de esquerda, mas sua prática é nitidamente conservadora.
Dessa forma, é o desafio que sobra: compreender o que está em jogo, buscar, talvez, uma frente de esquerda e amplificar os debates públicos. Uma frente que, a exemplo de outras ondas, consiga se multiplicar, para, na medida em que as contradições ficarem mais claras, se agrupar em uma iniciativa política.
Acho que a esquerda, com seus méritos específicos, está muito fragmentada, em muitos partidos. Creio ser hora de pensar, como saída para o debate, e o atual quadro de enfrentamento, numa frente de esquerda que abrigue tais partidos, abrindo discussões sobre todas as questões em jogo, elaborando propostas concretas em torno dessas reformas e de como apropriar socialmente os recursos, disputando-os com o governo de turno. Certamente, se não houver tal pressão, a partilha será pior ainda, e creio que esse é o nosso papel.
Correio da Cidadania: Acredita, de todo modo, que a futura presidente possa, de alguma forma, caminhar do foco mais assistencialista das políticas sociais sob o governo Lula – a exemplo do Bolsa Família - para um programa mais abrangente de distribuição de renda - incrementando, por exemplo, as políticas de valorização do salário mínimo e se contrapondo aos aspectos do projeto de reforma tributária, já em fase de discussão no Congresso, e que são prejudiciais à seguridade social?
Ildo Sauer: A campanha eleitoral deixou como ironia paradoxal um xeque-mate no governo que entra. A partir do momento em que a oposição conservadora propõe aumento do Bolsa-Família e do salário mínimo, o governo entrante não terá outra saída a não ser acompanhar a idéia. Paradoxal que tenha vindo do movimento conservador essa proposta de redistribuição. O alcance vai depender das contas públicas, da dívida pública e da taxa de juros extremamente elevada, promovendo uma dilapidação do valor do trabalho, na medida em que os impostos são arrecadados e encaminhados para bancar a usura do sistema financeiro, já que temos uma das taxas mais altas de remuneração financeira do mundo.
Nos EUA, tem até um movimento em curso de aumento da liquidez com injeção de dólares a custo muito baixo. É uma tendência natural que parte significativa desses dólares saia, chegue ao Brasil, aprofunde a queda da taxa de câmbio daqui, aumente as reservas, ou venha fazer investimentos como comprar terras, desnacionalizar mais empresas na área econômica, eventualmente até para forçar o governo a abrir mais espaço a empresas estrangeiras na exploração do petróleo, quando o projeto devia ser o contrário.
Devia se proceder a um maior conhecimento e delimitação das reservas e só produzir petróleo no ano para custear os investimentos das reformas da saúde, urbana, educacional, da infra-estrutura, mobilidade (inclusive de longa distância), agrária, viária, dos portos, da proteção ambiental, de ciência e tecnologia. E ficar com uma reserva de petróleo de valor debaixo da terra, não sendo administrada por uma oligarquia política que vai disputá-la a ferro e fogo dentro dos conceitos que descrevi antes. Não acredito que não haja nenhum investimento.
Há uma pressão no modelo que o governo discute agora de promover uma rápida licitação dos contratos de partilha, para abrir espaço econômico de investimentos em plataformas e infra-estrutura, capturar finanças e converter tudo em dinheiro. Tirar o petróleo debaixo da terra e convertê-lo em dinheiro.
Nesse processo, todo mundo vai ganhar. O governo vai acumular algum capital financeiro lá fora no fundo social, não se sabe em que moeda, porque todas estão em xeque hoje. Vão investir em títulos da dívida americana? Em euro, que não tem muita estabilidade, em função de sua credibilidade não estar ancorada em nenhum tesouro nacional (é uma confraria que tem uma moeda)? E os EUA estão em franca decadência. Em que moeda vamos verter o petróleo, em que país, na América Latina, África, EUA, Europa? É muito mais simples deixar o petróleo debaixo da terra e só produzir o volume necessário!
Correio da Cidadania: E controlar de verdade a exploração.
Ildo Sauer: E, antes disso, saber quanto tem de reserva, pra saber em que ritmo produzir ao longo do tempo. Por duas razões: em primeiro lugar, para tirar de lá apenas o excedente econômico necessário ao financiamento do projeto nacional de desenvolvimento econômico e social nos paradigmas que acabei de citar; e, em segundo lugar, para poder participar. O governo brasileiro não pode criar motos-contínuos, que, uma vez assinados os contratos, vão cumprir as etapas automaticamente.
Encontrou petróleo? Vão fazer o plano de avaliação, saber se é comercial, e, se for, vão começar a produzir e, o mais rapidamente possível, converter em dinheiro, no interesse daquele contrato. Isso se choca com a necessidade de ver qual o volume de reservas disponíveis para financiar as prioridades nacionais e, em segundo lugar, com o controle da participação brasileira no mercado internacional. Porque, sem o Pré-Sal do novo modelo, a produção anunciada hoje, só pela Petrobrás, prevê quase 6 milhões de barris por dia em 2020. Só por parte de outro empresário, que recebeu desse governo em 2007 o volume que agora já está entre 2,5 a 5,5 bilhões de barris, valendo de 27 a 55 bilhões de dólares como patrimônio, já se anuncia que em 2019 estará sendo produzido 1,4 milhão de barris por dia, sendo que a Petrobrás não produz 2 milhões atualmente.
E vão exportar tudo que se refere ao que está fora do novo modelo do Pré-Sal, mas como parte do que FHC e Lula entregaram. O Brasil vai ser o 3º. maior exportador do mundo. Em primeiro lugar, vem a Arábia, com 10 milhões de barris/dia; depois a Rússia, com 8 milhões; o Brasil estará em mais de 5 milhões de barris possivelmente em 2020, enquanto os demais não passam de 4 milhões. Isso apenas com o que se tem hoje entregue somente a dois grupos, Petrobrás e OGX, leia-se Eike Baptista - fora os outros que estão entrando. E note bem que este grande empresário já resolveu ser parcimonioso. Deu 1 milhão de reais pra cada campanha, de Serra e de Dilma, dizendo ser necessário não ser mal tratado por nenhum dos dois.
Desse modo, veja como é grave o risco da mexicanização. Uma enorme economia petrolífera, comandada por um governo na forma como vem se configurando: um condomínio de partidos e líderes com parca, digamos assim, capilaridade entre as forças sociais, e, ao mesmo tempo, sob pressão, do outro lado, dos grandes grupos econômicos, com enorme capacidade de influência.
Para quem produz tantos bilhões de barris, e sabendo como é comprável o financiamento das campanhas eleitorais e a lealdade dos eleitos a esses interesses - dentro do conceito second life, do discurso público diferente da prática nas entranhas do poder -, este é o caminho.
Correio da Cidadania: Isso é o mais impressionante. Hoje em dia o sujeito afirma abertamente o que pode ser entendido, sem distorção alguma, como a ‘aquisição particular’ do mandato – ironicamente, privatização do próprio parlamentar. Paga-se a propina na campanha e alguns interesses privados são escancaradamente atendidos por sobre outros.
Ildo Sauer: Essa é uma parte das questões políticas e econômicas que se colocam, porque no fundo eu vejo as limitações, no atual estágio da sociedade brasileira, de um partido que no discurso mantenha a realidade, mas com propostas práticas. Veja que até agora só falei de reforma, não de revolução, pois não vejo espaço para tanto. Talvez não fosse um sonho, mas não vejo como possível. Nem essas reformas estão na agenda! Essa é a tragédia resultante da consolidação da hegemonia política.
Por isso que PT e PSDB, que teoricamente teriam essa convergência social-democrata, mutuamente se excluem. Eles não querem um projeto, querem um espaço de poder, para manejar os recursos econômicos e serem gestores e líderes dessa partilha. Não há espaço para ambos fazerem a mesma coisa, que não é a reforma social-democrata. É gerir o capitalismo tal como ele está, com sua crueza, virulência, mascaramentos, contradições.
Nesse sentido, o processo político brasileiro lamentavelmente está subordinado à hegemonia dos grandes grupos econômicos, que estão se convertendo em meros síndicos do grande condomínio econômico. Como disse, o governo Lula avançou ao consolidar grandes grupos brasileiros dos vários campos da economia.
Consolidou alguns bancos, com fusões, principalmente após a falência de vários deles em 2008. Na área de eletricidade, o grupo Rede e a Camargo Correa ficaram hegemônicos na distribuição, grupos europeus e nacionais na transmissão e as estatais do sistema Eletrobrás foram convertidas em muletas voltadas a dar confiança às empreiteiras e ao capital privado. Tanto que a tarifa elétrica hoje é uma das mais caras do mundo ao consumidor cativo, e uma das mais baratas do mundo para os 600 consumidores privados do mercado dito livre, mas que na verdade é apenas usurpador. Na área da petroquímica, a Braskem se tornou hegemônica, com a Petrobrás servindo de âncora, por imposição do governo. Na área do petróleo, o caso mais notório é o da OGX, mas há outros grupos nacionais e internacionais crescendo muito aqui, na única das três grandes fronteiras mundiais do petróleo que lhes permite.
Além disso, o grande patrimônio brasileiro hoje na área de petróleo é duplo. De um lado, os recursos naturais estão debaixo do sal e da terra, valendo quase o mesmo. A organização social capaz de convertê-los em riqueza quando necessário e a Petrobrás estão, ambas, sendo alvo dessa mediação da entrega. Como exemplo, a OGX, como já ressaltado, criada em meados de 2007 - informação já confirmada pelo governo -, com ajuda de ex-integrantes dos governos Lula e FHC, arrancou lucros estratégicos sem nenhuma resistência e ação do governo. E logo depois de comprar os blocos em novembro de 2007, vendeu 38% das ações por 6,7 bilhões de reais, 11 meses depois de criada.
Portanto, ela já valia 17 bilhões e, ao fazer os primeiros furos, conforme previsto e denunciado previamente em 2009, já anuncia reservas de 2,6 a 5,5 bilhões de barris. E cinco bilhões de barris equivalem a tudo que o governo incorporou da Petrobrás pra aumentar seu capital, no valor de 42 bilhões de dólares hoje. O valor de mercado hoje seria dessa ordem, o que colocou um senhor como o mais rico do Brasil e um dos mais ricos do mundo, tornando-o generoso em filantropia. Vai às favelas, duplica a generosidade do presidente da República, ao arrematar o seu terno de posse em um leilão por 500 mil. E ainda o devolve ao presidente, dobrando a aposta. Vai ao Teatro Municipal e vira mecenas da arte e cultura, com migalhas do que herdou num lance articulado nos bastidores do governo, que não reagiu.
Esse é o indicador claro do risco que falo da articulação em torno do petróleo como mecanismo aglutinador de forças e recursos para manter a hegemonia político-eleitoral. É um exemplo concreto e aconteceu agora. Os mesmos atores estão vivos, reavivados e abençoados nas urnas.
Correio da Cidadania: Em entrevista ao Correio, o sociólogo Chico de Oliveira afirmou que, na medida em que o governo Lula tem consolidado no Brasil o ‘capitalismo monopolista de Estado’, chega a ser mais privatizante do que o de FHC. Ao mesmo tempo, o senhor ressaltou há pouco que não há muita diferença entre privatizar uma empresa ou instrumentalizá-la em favor de interesses privados, e que está se consolidando no Brasil uma partilha do espaço produtivo entre grandes grupos econômicos, entre eles Camargo Corrêa, Odebrecht, Eike Baptista, sob patrocínio do governo e com a ajuda do BNDES e dos fundos de pensão. Essas duas assertivas não estão bem associadas entre si?
Ildo Sauer: Sim, e caso não haja uma resistência popular organizada, com capacidade de entendimento da dimensão política, compreendendo que uma onda de mudança hegemonizada pelo PT não mais está em curso - em função da metamorfose do partido –, corre-se um sério risco de se consolidar esse curso econômico.
Mas os movimentos sociais ainda estão presos a isso, e é difícil recriar e mudar tal compreensão. É o desafio político: ter uma proposta e a capacidade de fazê-la compreendida em seus conceitos pelas bases, os verdadeiros interessados, ou seja, os trabalhadores, os grupos sociais, estudantes, todos aqueles excluídos da grande festa; aqueles que habitam a senzala da esperança, enquanto a Casa Grande faz a festa. E o padrinho, e também a madrinha, tem uma mão muito gentil na Casa Grande, enquanto a outra, pequenina, apenas acaricia o povo que mora na senzala.
Correio da Cidadania: O grande patrimônio brasileiro na área do petróleo está, como dito pelo senhor, submetido a uma mediação perversa para entrega a grandes grupos econômicos. Haveria alguma chance, mínima que fosse, de a presidente eleita negociar a volta do monopólio do petróleo, revertendo a Lei 9478/97 de FHC – já que se trata de uma reivindicação de vários movimentos sociais, bem como de estudiosos, que consideram que a substituição do modelo de concessão pelo de partilha da produção não é satisfatório, já que o setor privado continuará com presença maciça e determinante?
Ildo Sauer: Essa discussão tem dois papéis. Um de tentar de fato retomá-la, porque tecnicamente é possível se apropriar do excedente econômico do petróleo por vários meios: tributários, sobre a partilha, imposto de renda, há vários mecanismos. Mas o problema é que, embora possíveis tecnicamente essas várias apropriações, quem controla a reserva outorgada, quem controla a produção na partilha ou concessão, tem um poder econômico enorme na mão pra convencer o governo e o Congresso, como ficou claro nessa eleição e com o que já foi entregue. Isso está patente e claro!
Por isso a defesa do monopólio, da necessidade de delimitar, certificar e conhecer as reservas, definir publicamente o debate do ritmo de produção, do que fazer e onde aplicar o excedente econômico, em que reformas sociais. E tal idéia pode se tornar hegemônica, pois também tenho percebido nos vários campos estudantis, de operários, profissionais liberais e até de empresários, que, quando compreendem o que está em jogo, refloresce a idéia da necessidade do controle político da sociedade sobre esse recurso. Não é questão que se delegue a qualquer governo eleito, pois o transcende. Portanto, esse é um discurso que acho que chama a atenção e permite mobilizar parte da sociedade.
O outro ponto é a destinação, sem dúvidas. Todo mundo reconhece a necessidade da reforma da educação, da saúde, urbana, da mobilidade, da recuperação ambiental, do aprofundamento da ciência e tecnologia, de toda a infra-estrutura de circulação da produção nacional. É uma agenda que, conciliando os dois debates, pode mobilizar as forças. Mas não seria tarefa fácil. Até porque temos de reconhecer que qualquer governo tem um ano de graça, a não ser que aconteça um escândalo muito grande ou uma desgraça, o que é improvável.
Correio da Cidadania: Um governo Serra não seria, nesse sentido, ainda mais privatizante do que o governo Dilma poderá ser no que diz respeito ao nosso petróleo - afinal, ex-ministros do governo FHC criticam explicitamente a substituição do modelo de concessão pelo de partilha, sob o argumento de que o Estado não tem condições de levar adiante os investimentos astronômicos necessários ao Pré-Sal?
Ildo Sauer: Eu não afirmaria isso porque acho que ambos foram privatizantes. O que mudou foi o instrumento, a modalidade e a configuração da privatização. Entregar de 2,6 a 5,5 bilhões de barris de petróleo e uma hegemonia tecnológica do núcleo da Petrobrás a um grupo privado, sem nenhuma resistência, foi algo brutal contra o interesse público. Portanto, são vários formatos de privatização.
O que deve ser discutido é como o excedente econômico e a riqueza nacional são colocados a serviço das elites, e como poderiam ser colocados a serviço das reformas fundamentais na sociedade, pra criar a autonomia de todos os brasileiros.
Não vou ser repetitivo, mas é que se desgastou muito o debate da educação, saúde, nas eleições. "Sou o gerentinho que vai fazer tantas APAS, AMAS, Escolas Técnicas, não sei o que...". Cadê o conteúdo do debate? O SUS como conceito é excelente, mas está às traças. Basta dizer que poucos brasileiros que têm condições de evitá-lo se submetem aos seus serviços. Lamentável, mas é a tragédia do Brasil. A primeira delas, a educação.
Nesse sentido, são dois formatos semelhantes da mesma prática. Com nuances diferentes, mas conteúdo semelhante, e conseqüências também semelhantes. Interessante que tanto os grupos financeiros como empresariais são os mesmos, o que denota claramente que esse é um governo a serviço dos interesses dos grandes, como seria o outro, um com um estilo mais populista, outro mais elitista, o que é a grande diferença entre eles.
Evidentemente, para o grande empresariado e a burguesia, o governo sucessor do Lula é melhor, pois tem mais aceitação popular, além da confiança de tais setores, o que se cristalizou nas eleições. Eles devem estar muito felizes, pois fizeram a aposta certa. Tudo que vier de fora de tal expectativa será da mobilização popular, o que é uma tarefa gigante que se coloca diante daqueles que ainda têm uma concepção de sociedade diferente da que hoje é hegemônica - não no discurso, mas na prática real.
Correio da Cidadania: Pensando no setor elétrico, citado pelo senhor, o governo Lula tinha entre seus objetivos iniciais uma reorientação do modelo do setor relativamente ao modelo privatista de FHC. Vários estudiosos entrevistados por este Correio confirmam sua avaliação de que esse objetivo foi alcançado de modo muitíssimo limitado, na medida em que continuam a prevalecer grandes consumidores e sua lógica de lucro, a descapitalização das estatais e a influência de interesses de poderosos setores eletro-intensivos sobre o governo. Como ficará, a seu ver, o setor elétrico sob um governo Dilma? Diante de suas conjecturas políticas, tudo indica que não será nada menos privatizante do que o seria um eventual governo Serra.
Ildo Sauer: Ela é a madrinha do que foi feito, eu dizia que ela criou o Bolsa-energia para o ‘mercado livre’, que valeu cerca de 20 bilhões de reais de 2003 pra cá... Por que haveria de alterá-lo? Eles têm tido alguns dissabores porque periodicamente aparece, como neste ano, a ameaça de garantia do suprimento. Exatamente porque o mercado livre não contrata transparentemente sua demanda a futuro, vivendo de especular, do que o governo entendia como sobras e que não eram, e sim energia firme, que custava capital e recursos às estatais, vendida como se fosse energia de sobra, secundária, sem garantia e segurança.
Por isso, de vez em quando aparece, como agora, a idéia que chegaram a cogitar de operar todas as usinas de gás, e fora da ordem de mérito. Portanto, o consumidor cativo que paga, em beneficio dos livres, especuladores. Assim, nesse último ano até se chegou a cogitar operar as usinas a diesel, pois os reservatórios chegaram próximo ao limite mínimo de confiança. Em caso de crescimento econômico no ano que vem similar ao deste ano, podemos chegar ao fim de 2011 com muito risco, se a hidrologia dos dois anos acabar sendo desfavorável. O que mostra a instabilidade, pois a única reforma feita foi a da necessidade de contratação de longo prazo, uma proposta nossa, mas como veio junto da idéia de que parte do mercado não precisa registrar contratos de longo prazo, já veio fraudada no seu objetivo por conta dessa não contratação.
O restante do modelo ficou igual, com algumas pioras, como a não recuperação das estatais como empresas autônomas, sendo colocadas de muletas de parceria com empreiteiras e investidores privados na transmissão e geração; continuamos privatizando os potenciais hidráulicos; aliás, não fomos capazes de escolher os melhores nos últimos anos, tampouco de fazer os estudos sociais, ambientais, obter as licenças, negociar de maneira civilizada com as populações atingidas. Nada disso foi feito, repetimos o que era feito desde os governos militares. Como ela (Dilma) comandou tudo, talvez um pouco mais distante a coisa ande melhor, mas não há uma expectativa muito positiva de que isso aconteça...
E, de novo, como grande parte dos movimentos sociais atingidos por essas ações todas nos últimos momentos se posicionaram a favor dela, na falta de outra alternativa, chegamos a uma desmobilização diante do que vem por aí.
Correio da Cidadania: Dessa forma, a gestão do setor, um dos mais rentáveis de toda a economia nacional, é uma síntese do aparelhamento do Estado por interesses privados, além de uma pista de que tal modus operandi será mantido.
Ildo Sauer: O setor elétrico foi, sim, colocado a serviço dos interesses do grande capital. O BNDES financia tudo, os empresários privados comparecem de um lado com a muleta da estatal e do outro lado no mercado cativo para garantir a compra, além da pequena porção que vai para a especulação do ‘mercado livre’.
De forma que criamos um quadro onde a idéia anterior do PT de que o excedente econômico possível no setor elétrico (a diferença entre custo de produção e o valor na esfera do mercado da circulação na eletricidade), e mesmo em outros, como nas telecomunicações, poderia ser usado como alavanca para resolver as assimetrias na área das carências sociais, inclusive na infra-estrutura energética para todos, foi para as calendas. Fizemos o Luz Para Todos, com muita propaganda, mas nem todos têm luz, e muitos a têm precariamente. Além de muitos escândalos.
As estatais foram canibalizadas pelo mercado livre e colocadas a serviço dos novos investimentos desejados pelas empreiteiras; deixou-se de fazer a manutenção, o que levou a dois apagões notórios: o da linha de Itaipu e outro no Nordeste, mostrando a precariedade em que se encontra a manutenção. Depois de 20 anos operando com plena confiança, Itaipu caiu em descrédito, operando abaixo do nível de projeto, usando usinas a gás para segurar, por falta de manutenção e, claro, gestão do setor. Eis o quadro advindo da submissão da gestão das empresas aos contratos que as empreiteiras demandam. As estatais têm poucos recursos porque venderam grande parte de sua energia muito abaixo do custo.
Ademais, grande parte de suas gestões foi loteada entre interesses de base partidária, de despachantes de interesses empresariais e políticos, cuja demanda e atenção não eram voltadas à plena manutenção, confiabilidade e operação no nível máximo. Os gestores estavam lá, mas voltados a novos projetos, investimentos e a tais demandas políticas. Tanto que o sistema Eletrobrás tem uma rentabilidade abaixo do custo de capital médio, enquanto os grupos privados têm uma rentabilidade enorme no mesmo sistema produtivo. Os consumidores cativos pagam as tarifas mais caras do mundo, ao passo que alguns grupos privados e comercializadores têm à sua disposição a energia mais barata do mundo.
Eis a contradição criada nesses oito anos de governo. Se não acontecer nenhuma tragédia - que é muito improvável, mas não inteiramente descartável -, a festa vai continuar.
Correio da Cidadania: E Belo Monte, uma das jóias da coroa do PAC, mas tão criticada e combatida por ambientalistas e movimentos sociais pelos impactos ambientas e sociais, vai entrar nessa festa também?
Ildo Sauer: Já está fazendo parte. Belo Monte é uma empresa concebida no governo militar e a essência do que se previu fazer naquele tempo foi executada agora. Assim como no rio Madeira, com as usinas Santo Antonio e Jirau, gestadas no governo FHC com a Furnas e a Odebrecht. Apenas partilharam uma das duas com outro grupo, pra não ficar tudo com a Odebrecht.
De forma que, concretamente, há o processo de submissão desse espaço econômico, dos recursos naturais e da estrutura empresarial estatal, ao interesse da acumulação capitalista dos grupos privados. É a essência do que vem sendo feito.
Tal lógica vale para o petróleo e por isso a afirmação de que o governo Lula é o que mais instrumentalizou, de maneira mais eficaz, com mais aceitação social, a submissão do espaço econômico dos recursos do Estado em favor da acumulação capitalista privada.
É o que está em jogo. É nesse sentido que vai minha afirmação, e de muitos outros, de que o Lula consolidou o capitalismo e instrumentalizou o Estado no Brasil.
Correio da Cidadania: Correm especulações de que serão tomadas medidas fiscais duras já nesse fim de mandato de Lula, para evitar desgaste de Dilma em início de gestão. O que pensa a respeito?
Ildo Sauer: Primeiro, é preciso ver que reformas são essas. Note que há reformas e reformas, e quem clama por elas quer reduzir direitos trabalhistas, sociais, previdenciários. É isso que está em jogo. São contra-reformas na verdade, o aprofundamento do modelo concentrador de privilégios e riquezas. É difícil avaliar, pois acho que o Congresso estará mais dócil, a não ser que a disputa pela partilha de cargos seja muito violenta.
Mas o governo o tem ao seu lado hoje, embora nenhum partido tenha significado. Ou seja, está tudo pulverizado e todos buscam uma fatia. De maneira que, se a partilha for promovida no estilo anterior, vai ter uma maioria pra fazer qualquer coisa no começo do governo. Vai ser mais fácil a aprovação de projetos no novo governo, tanto que já se cogita concluir o modelo do Pré-Sal depois. Isso porque do Congresso atual sobra pouco; os derrotados têm expectativa relativamente baixa e os reeleitos estão olhando o futuro. Assim, no início do governo, vão tentar colocar as principais questões na mesa e resolvê-las na medida em que se consolidam as promessas de entrega da barganha.
Não sei se me faço entender, mas é algo como "vamos fazer essa e essa reforma no começo e votá-las. À medida que vocês forem confirmando os votos, vamos confirmando o espaço no governo pra vocês". É um pouco jogo de gato e rato, porque ninguém mais confia em ninguém, uma desconfiança mútua generalizada.
Correio da Cidadania: Vão fazer troca de reféns.
Ildo Sauer: É uma boa figura de imagem, é o que está em jogo neste processo político.
Correio da Cidadania: Quanto a estas facilidades referidas do novo governo no Congresso, Chico de Oliveira, na entrevista ao Correio acima citada, afirmou também que as bancadas majoritárias, e agora aumentadas, da base governista nas duas casas farão o próximo governo mais conservador do que o de Lula. O que pensa a respeito de tal idéia?
Ildo Sauer: Creio que sim, porque será mais fácil trabalhar. E é preciso compreender o papel secundário que lamentavelmente o Congresso tem tido ultimamente, de mero carimbador. Grande parte da representação eleita se converte muito mais em despachante do interesse de grupos, muitas vezes com forte conteúdo econômico e até empresarial. Foram eleitos de forma genérica, com apoio de recursos e a profissionalização da campanha...
Nesse sentido, entendo que o Executivo detém o poder real. O Congresso é um espaço de legitimação formal da democracia, mas os grandes debates nacionais estão em outros campos há muito tempo (no campo econômico), os quais o Congresso apenas legitima. Seus líderes buscam um tentáculo, algum espaço em órgão de governo, acima de tudo alguma estatal, onde poderão nomear o despachante de interesses e mediar e proteger o jogo econômico dos grupos que os apóiam.
De maneira que novamente se manifestam as duas mãos. Acho que há uma figura de imagem muita apropriada do processo político do Brasil: o Second Life, ao qual já me referi, criado há algum tempo, em que o sujeito, além de cuidar de sua vida real, programa e vai comandando uma vida no computador. Eu temo que o típico agente político brasileiro tenha sua second life; uma pública, e a outra que fica nesse compromisso permanente, que não aparece, mas é com quem vive mais intensamente, o verdadeiro âmago do que ele faz: as articulações com o poder econômico. Ao mesmo tempo, tem a necessidade de aparecer diante de setores amplos da população como representante de algum interesse popular. Mas, na verdade, se expressa de um jeito ao público, enquanto, na articulação interna, inclusive em alianças interpartidárias na base do governo, busca avidamente nomear dirigentes de órgãos públicos, que por sua vez são colocados lá como mais que despachantes de interesse. Servem a essa correia de transmissão montada pra promover, de fato, a partilha daquele excedente econômico que cabe ao Estado e às empresas públicas gerirem. E as empresas de grande porte são muito visadas, porque direcionar contratos, organizar e legitimar esse processo é uma das tarefas. Tanto que grande parte da competência atribuída a dirigentes é a de ser o preposto político capaz de escapar dos órgãos de fiscalização e das áreas corporativas da empresa.
Inclusive, e de certa forma, isso é uma tragédia que diminui um pouco o alcance da Lei Ficha Limpa. Porque se, de um lado, ela surgiu de um sentimento público contra a prática de ilícitos contra a economia popular e o patrimônio público, por outro lado, grande parte dos dirigentes políticos terceiriza e nomeia despachantes para praticar tais atos. Eles não os cometem mais diretamente, pois têm seus prepostos para tal.
E ironicamente, em muitas corporações, já se criaram elites, que são como jogadores de futebol, cujo passe é comprado e vendido. São bem treinadas tecnicamente a serviço da nomeação política. Um exemplo notório foi com o ex-presidente Collor, cassado, capaz de ter um preposto, que nem conhecia de antigamente, que alugou o crachá de um técnico da Petrobrás para ser seu diretor da BR Distribuidora. É típico exemplo de como o alcance da Lei Ficha Limpa, efusivamente saudada, tem seu papel limitado, na medida em que a deterioração do papel político do Congresso, dos eleitos, faz com que estes não desempenhem papel direto, mas ‘apenas’ de influenciar diretamente, nomeando prepostos que nunca vão ser candidatos. Se forem pegos e condenados, o preposto lava as mãos. Esse é o processo político pós-mensalão.
Correio da Cidadania: O que acontecerá e como reagirá um futuro governo Dilma, e os movimentos sociais, caso uma nova crise econômica bata às nossas portas?
Ildo Sauer: Só vai ter recurso pra minorá-la, a não ser que bata profundamente e as contradições aflorem; aí pode ser difícil. Mas já passamos pela experiência do Jânio, de estilo voluntarioso, personalista, que renunciou; passamos pelo governo Collor, que tentou promover a partilha entre diferentes grupos econômicos, mas foi ejetado do processo, retornando agora nas asas do socialismo moreno e do caudilho do ABC... É difícil prever o grau de coesão e coerência. Enquanto houver o que partilhar no plano institucional e com os movimentos sociais...
A nova cartada que está na mão com o modelo do Pré-Sal é o poder autocrático e unilateral do presidente, que pode ouvir um conselho nomeado por ele e tomar a decisão de quanto vai produzir e como gerar as expectativas em torno disso. É um elefante na cartola da presidente eleita. Volto a olhar para o México, sendo importante lembrar que, no período de hegemonia da Pemex, o petróleo valia pouco - o excedente era pequeno, na diferença entre custo e preço, pois sua apropriação se dava em outras etapas, não na de produção, como agora. Portanto, acho que o grande coelho da cartola será sempre a partilha do Pré-Sal. No caso é trocadilho, já que o modelo de partilha permitirá... a partilha - não só entre governo e produtores, como também entre os vários produtores. É um recurso de que o governo dispõe pra manter a correia de transmissão andando.
Havendo uma degradação muito forte da chamada moralidade e probidade, já notoriamente degradadas, tal percepção talvez possa chegar às bases se a crise for muito violenta, sem que se consiga manter a pequena mão esquerda fazendo a redistribuição e um pouco de carícia. Talvez, a mão do Lula seja percebida por sua história; o pouco que ele dava aos pequenos provocava enorme sentimento de reconhecimento e esperança, o que talvez não venha pela outra mão.
É difícil fazer previsão do que vai acontecer numa crise. As conseqüências reais aqui dentro vão depender da capacidade da esquerda em se reorganizar em cima de uma nova compreensão do que está em jogo, numa clara plataforma de reformas possíveis no atual estágio de compreensão e mobilização política. Organizar, criar um movimento mais amplo, buscar espaço nos sindicatos e movimentos e recuperar seu espaço de atuação.
Aí, qualquer crise econômica lá fora vai se refletir numa possível mudança da trajetória política do Brasil. Do contrário, é mais do mesmo: mexicanização e justicialismo.
Correio da Cidadania: Pensando um pouco na nova equipe de governo, o que imagina da hipótese de a atual ocupante do cargo de diretora de Energia e Gás da Petrobrás (cargo no qual substituiu Ildo Sauer no segundo mandato de Lula), Graça Foster, ir para a Casa Civil?
Ildo Sauer: Entendo que a Casa Civil sob um José Dirceu era uma Casa Civil com conteúdo político, isto é, tinha um ator com densidade, que operava nas articulações, negociações, em detrimento da hegemonia do próprio presidente. Quem cumpriu à risca os ditames de ser operador em campo, de segurar a máquina estatal, dominá-la, quem negociava com grau de gentileza maior conforme a nobreza do interlocutor nos estamentos da Casa Grande, e tratava com rudeza o povo da senzala, isto é, funcionários públicos, de estatais, era a Dilma. Criou um estilo que é a antítese do que dizem os manuais de gestão, mas foi operativamente, do ponto de vista político, muito instrumental ao Lula, que ficou preservado, tendo alguém que lhe era fiel e operava todos esses campos da maneira descrita, tanto que ele acabou premiando-a com a candidatura e apoio, carregando-a na eleição com seu prestígio.
Para tal paradigma se repetir, talvez não seja impensável uma clone da ex-chefe da Casa Civil e atual presidente, no método e estilo, ocupando o espaço praticando os mesmos métodos. E seria alguém (Graça) ‘liberado’, de muito baixo conteúdo político, baixa densidade pessoal, sem história de liderança no partido, pois é um enxerto já da era da metamorfose petista plena, que chegou muito mais como operadora. Ter no seu entorno, para negociar as concessões aos demais partidos e grupos, alguém de mais densidade política talvez não seja a opção de quem quer manter a hegemonia, o comando a ferro e fogo. Melhor ter alguém que compartilhe sua personalidade, que execute a ferro e fogo o serviço necessário, para que a grande mediação seja feita pelo primeiro mandatário, que só intervém lá na frente, após mandar fazer as coisas.
Foi assim que operou o Lula no pós-Zé Dirceu. Ele estava confinado ao núcleo duro do partido, pois até 2005 quem mandava no governo era o núcleo duro do PT. Três ministros e um presidente que pensavam quase igual: o da Casa civil, o das Comunicações, o da Fazenda e o da Secretaria Geral de governo. Os quatro ministros originários da articulação histórica do partido chefiavam o governo, formando quase uma junta. Mas ela foi degolada e o príncipe emergiu sozinho. Passou a usar subalternos para domar a classe política em seu entorno e promover a partilha, o que tornou Dilma conhecida como gerente eficaz, na medida em que executava à risca os acordos, independentemente dos princípios em discussão. Impunha-os e salvaguardava a figura do presidente.
Esse é o modelo que está posto. Agora, vamos ver o superpríncipe – afinal, não há "rei morto, rei posto", há um muito ‘vivo’ que vai sobreviver - e depois também os comportamentos. Criador e criatura sempre têm conflitos.
Correio da Cidadania: Acredita que, conforme dita o padrão histórico, Dilma poderá se voltar contra Lula? Ou ela veio com a serventia de possibilitar a volta de Lula em 2014?
Ildo Sauer: Depende da conjuntura. A natureza intrínseca do processo levaria a uma possibilidade de afirmação definitiva de que Lula tem a última instância, o poder máximo. Só que exercê-lo às vezes exige uma conjuntura política, articulação, e de vez em quando há erros de avaliação.
A tendência natural seria essa. Mas ninguém aceita de bom grado ser um preposto ocupando o posto máximo. É estratégia de jogo de poder. É melhor ler Maquiavel pra explicar o que vem por aí, ele é capaz de explicar melhor que eu.
Correio da Cidadania: Lula, como os jornais noticiam, "sugeriu" a Dilma que mantenha Meirelles, Guido Mantega e o restante da sua equipe econômica em seus lugares. Dilma vai acatar as sugestões de Lula? No geral, o que o senhor espera da montagem do novo staff? Haverá um arco de líderes e ministros dos mais variados matizes, como fez Lula?
Ildo Sauer: Acho natural que sim. Aquilo que deu certo tem tudo pra ser mantido - a grande mediação. Assim como as questões do comando do governo, e de toque pessoal, de hegemonia interna, ou do comando da Casa Civil com alguém que seja um fiel executor de tarefas, mais do que um articulador de grande porte.
No restante, o governo tem de afirmar que ele vem para ser a continuidade do que já está aí. E, portanto, todos os compromissos com taxa de câmbio, juros altos, toda a lógica que prosperou e fez o que fez prosseguirá, de modo que não há muito a esperar com relação à mudança. Pode até trocar o nome do ator, mas o papel a ser exercido é o mesmo.
A partilha está aí na configuração de toda a equipe, tendo de ser um pouco ampliada, uma vez que o equilíbrio eleitoral é um pouco maior; são quase equivalentes PT, PMDB, PSB e os outros que estão lá, o que aumenta o poder de mediação do príncipe, ou da princesa, que em última instância é quem poderá arbitrar o dote que caberá a cada um.
Trata-se disso, partilha dos dotes. Este é o socialismo! Não o que criamos desde os anos 80, na fundação do PT. Trinta anos depois, vemos o socialismo: a socialização dos espaços do governo entre os grupos políticos, que por sua vez estão lá subservientes a interesses em geral empresariais, do capital, não ao que diz o discurso, voltado aos movimentos sociais. A eles, as migalhas.
Correio da Cidadania: Diante do quadro geral aqui traçado, qual a sua opinião quanto ao apoio que a candidata petista acabou por angariar junto à esquerda e aos movimentos sociais - estes mesmos que partilham as migalhas! -, especialmente no segundo turno? Acredita que fará algum jus a este apoio?
Ildo Sauer: Vendo que ambos, PT e PSDB, são muito parecidos, e com a imagem histórica do PSDB claramente vinculada ao neoliberalismo, apesar da trajetória de Serra - digamos que ele era a esquerda da direita, enquanto a Dilma a direita da esquerda -, havia pouca clareza para a esquerda e os movimentos sociais.
À medida que o Serra assumiu uma agenda conservadora de direita, não deixou espaço aos movimentos sociais que se vêem como esquerda, a não ser se vincular à mão esquerda do Lula, deixando de olhar a mão direita, que também estava lá. Agarraram-se à mão a esquerda do Lula, sem se perguntarem o que a mão direita, a hegemônica, fará depois.
Portanto, creio que no tabuleiro político faltou um pouco de percepção do xadrez, dado que propostas e práticas são muito parecidas. Aqueles que foram para a candidatura do PSOL ou ambiental no primeiro turno, ou anularam ou se dividiram no segundo; um pouco mais para o Serra, mas não o suficiente para consolidar a vitória eleitoral, mesmo com pouco mais de 40% dos votos do eleitorado. Grande parte dos movimentos optou por tapar as narinas e votar na candidata herdeira de uma história de esperança, especialmente porque o discurso exageradamente conservador do candidato tucano assustou. De certa forma, ele encurralou essas correntes entre a Dilma e o voto nulo.
De qualquer maneira, evidencia-se um imenso vazio político. Falo assim apesar da agenda verde e nova no 1º. Turno, mas com baixo conteúdo social para responder aos anseios nacionais, e do discurso socialista, que não conseguiu se sustentar, em parte porque as regiões que mais se beneficiariam de tal discurso ainda estão prisioneiras do discurso da esperança e da mudança que vem da construção do PT. Uma construção que só agora, após uma longa onda de 20 anos, chega lá, onde talvez só chegue o discurso, porque nas práticas só temos tênues mudanças.
O Bolsa Família, por mais necessário que fosse para extirpar a fome, que grassava, não é suficiente como processo político de criação de autonomia, participação efetiva, tornando os brasileiros mais iguais; ao contrário, aprofunda e cristaliza uma situação social e política inaceitável. Como instrumento de arrancada, é necessário. No entanto, cristalizá-lo cria uma situação política de dependência permanente do paternalismo, outra coisa invocada nessas eleições, de um lado pelo conservadorismo e de outro pelo populismo paternal e agora maternal.
E veja como é contraditório: afirma-se uma mulher presidente como inovação, ao passo em que ela é apresentada como uma mãe, herdeira de um pai maior, criando não afirmação da independência, autonomia e igualdade entre mulheres, homens, regiões etc., mas aprofundando uma relação de dependência, herdeira de uma sociedade injusta, contra a qual foi criado um partido e muitos movimentos sociais. Eis o quadro.
Correio da Cidadania: Finalmente, ainda acredita em um projeto democrático-popular para o Brasil, nos moldes antes pregados, e abandonados, pelo PT, ou imagina que este seja um caminho que se tenha esgotado, devendo ser substituído por um outro projeto de nação?
Ildo Sauer: Eu acho que o PT tal como criado não existe mais. É um partido convencional que busca tirar o máximo possível da herança memorial de esperança, ainda retendo em suas prisões, seqüestrado, o imaginário de mudanças dos movimentos sociais, com um discurso longa e arduamente construído, ainda que grande parte dos precursores hoje esteja longe. Aqueles que se apoderaram deste patrimônio de mobilização social ainda vão querer tirar o máximo de proveito. Como seus escrúpulos já não eram muitos antes, certamente não terão os mínimos agora, depois da metamorfose, buscando arrancar o máximo dessa etapa, que os próprios vêem como os estertores de um projeto que começou cheio de sonhos, solidariedade, esperança, transformação, e virou uma disputa quase igual à da Noite dos Cristais, dentro e fora do partido.
Temos de fazer uma autocrítica. Muitos de nós partilhamos tal projeto, em detrimento de um outro mais ortodoxo, de exame das reais contradições que habitavam a sociedade brasileira, conseguindo estruturar movimentos sociais capazes de compreender estas contradições e articular um poder real. Um poder em que os líderes que ajudaram nas formulações e se afirmaram no debate dentro das bases fossem os líderes do projeto, criando estruturas orgânicas fortes e indissolúveis, capazes de chegar ao poder e exercê-lo.
Fizemos o contrário: delegamos a agentes simbólicos, com baixo grau de comprometimento, uma agenda real de esquerda. E que puderam, nessa estrutura tênue de correias de transmissão, de laços de cobrança, numa estrutura de partido com forte inserção social, fazer tudo que vimos. E a figura principal foi a cabeça do projeto, que tinha um grande legado histórico, simbólico. Como disse alguém um dia, "a qualquer chefe de esquerda lhe falta o dedo, perdido por um operário na fábrica". Isso é altamente simbólico. Para qualquer líder de esquerda ocupar um lugar hegemônico, vai lhe faltar o dedo perdido na labuta operária. Esse forte simbolismo não se traduziu em compromissos concretos, com a compreensão das contradições da sociedade.
É muito simbólica a afirmação do presidente da República de que ele "chegou lá". Parece que é um Pelé, um jogador ou modelo que chega longe na carreira. Como se fosse possível ter 190 milhões de Pelés, 190 milhões de Lulas, 190 milhões de Giseles Bündchen no Brasil, como se a estrutura social permitisse.
Esse grau verbalizado no discurso mostra claramente a ausência de compromisso com a realidade das contradições dentro do âmago da sociedade brasileira, que é a estrutura social de produção e distribuição do produto social entre os grupos da população. Isso é que precisa ser rearticulado: aumentar as forças produtivas, produzir mais e garantir que a distribuição seja melhor. Mas não se leva a cabo tal tarefa com populismo, assistencialismo, paternalismo, maternalismo, pra onde tudo descambou.
É a autocrítica que faço. Muitos intelectuais participaram do processo e, embora tendo uma compreensão maior, acabaram delegando poder. O símbolo maior foi o sindicalismo. Toda a base, que tinha um baixo entendimento do significado político do que estava em jogo, preferiu depois se servir do espaço de poder e dessa nova partilha com o sistema econômico dominante. E se subordinou a esse capitalismo, aqui no Brasil dependente, mas com um pouco mais de autonomia hoje em dia pela nova inserção internacional do país, criando até asas para um sub-imperialismo na África e América Latina.
Foi o que fizemos, creio que deva ser essa a autocrítica. A estrutura partidária tênue que o PT representava, com facções e diversos grupos, permitiu que quem mais lançasse asas às alianças com a burguesia se tornasse a articulação hegemônica, terminando por desempenhar todo esse papel. É um aprendizado duro, mas vamos ver o que emerge daqui em diante.
Meu último lampejo de esperança é que tudo que disse nesta entrevista não seja verdadeiro. Lá no fundo ainda sobra um pouquinho, um milionésimo, de esperança de que não seja.
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.
Fonte: Correio da Cidadania.
segunda-feira, 8 de novembro de 2010
História das lutas sociais de Joinville – estudos IV
O grupo de formação política do PSOL Joinville realizará o seu quarto encontro nesse ano. Acreditamos que a formação política é uma atividade prioritária e não deve ser relegada ao segundo plano.
O próximo encontro retomará um modelo utilizado em 2009 que consiste em chamar pessoas de outros grupos, organizações e histórias distintas das do PSOL, mas que, nesse diálogo, permitem repensarmos nossa prática, corrigirmos nossas metas e construirmos unidades políticas para a construção da sociedade socialista.
O historiador e militante político de direitos humanos, Maikon Jean Duarte irá fazer uma apresentação cujo título é “Edgar Schatzmann: Fragmentos da história de uma pessoa extraordinária”, resultado parcial de uma pesquisa sobre as lutas sociais em Joinville.
Edgar Schatzmann foi militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) entre 58 até metade da década de 80, participando ativamente das lutas sociais desse período em Joinville, inclusive contra a ditadura civil-militar, e sua história pessoal é representativa dos conflitos do período.
Usaremos como texto base o capítulo Joinville e o Batalhão durante o regime militar do livro O Exército e a Cidade dos historiadores Sandra P. L. de Camargo Guedes, Wilson de Oliveira Neto e Marilia Gervasi Olska, disponível aqui ou aqui.
O encontro será realizado no dia 27 de novembro, às 15h na sede do Partido Socialismo e Liberdade (Jerônimo Coelho, 285, centro). Sinta-se convidada/o.
PSOL Joinville
segunda-feira, 11 de outubro de 2010
Consenso conservador cria falsa divergência entre Serra e Dilma - entrevista com Chico de Oliveira
09-Out-2010
Aqueles que esperavam se deparar com um digno debate político no primeiro turno, que pudesse ajudar na escolha de um candidato, acabaram bastante frustrados. Denuncismo hipócrita, promessas excessivas, citações de feitos passados, desfile de números e siglas invadiram o cotidiano dos eleitores, sem nada lhes dizer dos problemas reais do Brasil e de projeções efetivas para o futuro.
Entre os adversários à frente nas pesquisas, e que agora disputarão o segundo turno, nós cidadãos, vimos, de um lado, um candidato que não se arriscaria jamais a uma crítica cerrada ao presidente Lula, com medo de perder mais popularidade; de outro lado, uma candidata que não poderia levantar os temas cruciais da nação, temerosa de perder o apoio da burguesia.
A ausência de radicalização por parte de Serra e de Dilma perfaz um retrato cabal da despolitização a que assistimos, de forma a só cortejar as visões mais consensuais e conservadoras. O estilo comum aos dois candidatos consiste, ademais, em uma demonstração inequívoca da sua conformação ao modelo de sociedade neoliberal.
Para o sociólogo Francisco de Oliveira, nosso entrevistado especial, não é necessário ir longe e nem divagar pela questão religiosa ou ambiental para buscar as causas do crescimento de Marina no primeiro turno. Foi em meio à convergência entre Serra e Dilma que pôde surfar uma candidata, que, para Oliveira, não tem proposta alguma, prega um ambientalismo vago e genérico, não entra em bola dividida e sequer se pronuncia em assuntos cruciais.
O futuro, pelo menos o mais próximo, não se apresenta muito alvissareiro para o sociólogo. Dilma será a provável vitoriosa, os debates entre ela e o adversário devem prosseguir bastante rasteiros no segundo turno e a maioria parlamentar obtida no Congresso pelo bloco liderado pelo PT deverá reforçar o conservadorismo do partido, assim como a regressiva característica de uma agremiação que passou a se constituir em uma mistura entre o PRI (Partido Revolucionário Institucional, no México) e o peronismo.
Confira abaixo.
Correio da Cidadania: Como o senhor avalia os resultados das eleições presidenciais até o momento, que definiu o 2º turno entre Dilma Rousseff e José Serra? Por que Dilma não ganhou no primeiro turno, conforme muitos esperavam?
Francisco de Oliveira: Acho que está tudo dentro das margens de erro das próprias pesquisas. Não houve grande surpresa. A surpresa, de fato, foi a Marina Silva com quase 20%, que as pesquisas não detectavam e ninguém acreditava. Essa é a grande surpresa. Mas os resultados entre Serra e Dilma não são nada surpreendentes.
Correio da Cidadania: Há diversas teorias sobre o crescimento da candidatura Marina na reta final - um dos motivos apontados, inclusive, para a existência do segundo turno. Alguns crêem na força do eleitorado religioso e anti-aborto, tema usado grosseiramente para denegrir Dilma; outros desmistificam tal questão e dizem que Marina entrou no vácuo de uma classe média desorientada politicamente, mas que de alguma maneira se opõe à atual política. Enfim, como o senhor define essa ‘onda verde’?
Francisco de Oliveira: Olha, o fenômeno Marina não é tão enigmático assim. Na verdade, ela cresceu porque a campanha dos outros dois principais candidatos não se radicalizou. Eles são, de fato, muito convergentes e, evidentemente, uma brecha no eleitorado foi bem aproveitada por Marina. Não creio que tenha sido voto religioso, ou em função de a candidata se declarar contra o aborto... Acredito que foi produto da não radicalização das outras duas campanhas.
Correio da Cidadania: A existência do 2º turno representa, a seu ver, algo positivo para o país nestas eleições?
Francisco de Oliveira: Acho que é positivo sempre, não só nessa eleição, como em todas. Não é bom para a democracia termos unanimidades burras, como dizia Nelson Rodrigues. É bom haver mais discussão, espaço, mais candidatos. Acho que lucramos. Esse segundo turno poderia servir pra aprofundar o debate. Não é certo que vá acontecer, mas existe a possibilidade.
Correio da Cidadania: Como o senhor enxergou o debate eleitoral realizado para o primeiro turno, no que se refere à priorização de temas e à profundidade com que foram tratados?
Francisco de Oliveira: Sempre muito pobre. O único que tinha algo a dizer era o Plínio, mas não tinha muito tempo. Foi tudo muito raso, de parte a parte. O Serra não tinha muito a prometer, pois, na verdade, tem muito pouca divergência com a Dilma, e vice-versa. Ambos são tidos como desenvolvimentistas, favoráveis a ritmos acelerados de crescimento. Serra conflitou-se com FHC quando era ministro do Planejamento em questões monetárias, cambiais, mas com a Dilma há muita convergência. E é isso que leva à não radicalização de propostas.
A Dilma deve ter também suas divergências com Lula, a não ser que ela seja um fantoche mesmo, o que ainda não está provado. Que ela é uma invenção do Lula, é, mas pode não ser um fantoche. Porém, o fato é que existe muita convergência com o Serra. Em princípio, estamos em um ciclo virtuoso e não há muito a corrigir nos rumos do país, uma vez que a herança de Lula é bem vista. Aumenta um pouquinho o Bolsa-família e por aí vai, de modo que o debate seria morno mesmo.
E foi essa convergência entre Serra e Dilma que, como mencionei, abriu o espaço para a Marina. Mas, se repararmos direito, ela não tem proposta alguma. Prega um ambientalismo vago, genérico, não entra em bola dividida, como se diz em futebol. Em nenhum assunto crucial ela sequer se pronuncia, de modo que foi uma ascensão muito específica, conjuntural, e não avaliza nenhuma promessa futura.
Correio da Cidadania: Como avalia a atuação da esquerda socialista nesta eleição, representada essencialmente pelo PSOL, PCB, PSTU e PCO?
Francisco de Oliveira: A esquerda teria muitos motivos para criticar o sistema e a forma como vem funcionando no país, mas não tinha tempo e nem recursos, e hoje eleição é isso. Foi muito complicado o desempenho. O Plínio ainda conseguiu ser convidado para os debates principais, os demais nem sequer foram convidados. Mas, de toda forma, a grande imprensa ignorou a todos.
Por conta disso, não dá pra dizer que os resultados foram decepcionantes, porque uma coisa que não é exposta, proposta, não chega ao grande público, não pode mesmo se transformar em voto. A Marina teve condições maiores de exposição devido à entrada do dono da Natura, que lhe deu recursos e, ao que parece, tomou gosto pela política, ao menos de acordo com declarações nos jornais. Assim, ela pôde fazer campanha. E a imprensa também se interessou muito por ela, por ser uma espécie de ser exótico, que estava ali no meio com uma história pessoal muito dignificante, uma pessoa pobre que nasceu em seringais, disputando a presidência, muito parecida com o Lula.
Portanto, todos esses fatores criaram muito interesse sobre ela. Até porque o ambientalismo dela é genérico e não contesta o todo, o sistema. Quanto ao seu partido, o Partido Verde, só tem alguma expressão na Alemanha, em nenhum outro país tem expressão política ou eleitoral. De modo que no Brasil não há nada muito promissor. Creio que sua ascensão foi bastante conjuntural devido às características dessa eleição.
Correio da Cidadania: O senhor discorda, portanto, de várias análises que vêm circulando, e que ressaltam a expressiva votação obtida por Marina como um capital para que a candidata se confirme como força política de peso no país, carregando a bandeira da Terceira Via e do Ambientalismo?
Francisco de Oliveira: Não acho que seja um capital que vá render muitos juros... Como disse, só na Alemanha existe Partido Verde com certo peso; em outros países, os verdes nem existem. E não vejo no Brasil tal perspectiva. Seria muito surpreendente que os brasileiros se transformassem em ambientalistas militantes. Isso é mais coisa de religião que de cultura política. Não acredito que Marina tenha se constituído num capital que vá ter desdobramentos adiante e abrir uma via alternativa.
Correio da Cidadania: Qual a sua opinião quanto aos resultados eleitorais no que se refere ao Parlamento, com o avanço do PT e sua base aliada nas duas casas, ao lado da regressão de partidos como PSDB e DEM?
Francisco de Oliveira: É a velha história. PSDB e DEM estão na verdade como defuntos, foram arrastados para o buraco; o PT e o PMDB nadam, por sua vez, de braçada, com muito dinheiro, como se foi sabendo aos poucos; e o PMDB permanece com sua eterna característica de ser um partido muito regionalizado, sem uma liderança nacional (o Temer não será tal liderança), e muito fraturado em todos os lados. Mas essas características também concedem ao PMDB uma capilaridade importante para eleger muitos deputados. Nada excepcional, já que, se não houver nenhuma trombada histórica, o PMDB sempre terá tais resultados.
Enquanto isso, o PT também nada de braçada, com muito dinheiro, todo mundo querendo agradar ao rei, sem nenhuma dificuldade, além de carregar uma campanha muito vitoriosa, com um resultado positivo em votos proporcionais. Não acredito que essa bancada poderosa constituída por PT e PMDB vá resultar em diferença política. Vão se comportar como já estão: de maneira fisiológica e muito conservadora.
Correio da Cidadania: Caso Dilma vença as eleições, governar com esta maioria não levará a um predomínio ainda maior do Executivo na política nacional, na medida em que poderá crescer a sua ingerência sobre o Legislativo?
Francisco de Oliveira: Essa ingerência já ocorre em elevado grau. Mais do que com Lula, não dá nem pra imaginar. Para o povão, não tem nenhuma importância. O povo vai no velho ditado de que todo político é ladrão, não tem apreço por essa discussão. O Legislativo é uma instituição que existe desde o Império e que nunca se firmou para nada. Sempre fazia a vontade do rei no Império.
Não se criou, portanto, uma cultura política nacional que desse destaque e importância ao Legislativo. Situação que permanece, com os parlamentares como espécies de reis civis. E com a tendência crescente de maior importância da economia sobre a política, leva-se o Executivo a dar de braço e cutelo sobre o Legislativo.
O Legislativo não tem autorização e nem poder pra criar despesas, onde já se viu isso? Trata-se de algo que ficou da ditadura e não foi reformado pela nova Constituição. Não há nenhum ato ou lei que saia do Legislativo que implique em despesas que o Executivo seja obrigado a obedecer.
Portanto, mesmo com muita desinformação, caciquismo, de alguma maneira o povo sabe disso: que, para arranjar um empreguinho, um deputado ou senador podem ser eficientes; mas, para algo mais, sabe também que o Legislativo não funciona.
Correio da Cidadania: De todo modo, o governo Lula freou diversas pautas progressistas e reformistas, alegando não haver uma correlação de forças favorável para levar adiante as mudanças, o que acabou tornando célebre o discurso da governabilidade. Acredita que, com maioria no Congresso, haveria alguma chance de serem levadas adiante questões mais polêmicas e combatidas por uma elite ainda muito conservadora, como o aborto, a reforma agrária e a afirmação de direitos de minorias, entre outras?
Francisco de Oliveira: Não, vai ser pior. Essa maioria vai tornar o PT mais conservador do que já é. É um equívoco pensar que assim o PT se liberta de algumas amarras e pode retomar um papel transformador. É o contrário, essa maioria vai dar liberdade para que seja mais explícito em seu fisiologismo e conservadorismo. Não tenho a menor esperança.
Correio da Cidadania: Ainda na hipótese de vitória de Dilma, fala-se muito a respeito da mexicanização de nossa política, em alusão ao longo período em que o PRI – o Partido Revolucionário Institucional - permaneceu no poder no México. O que pensa disso?
Francisco de Oliveira: Acho que o PT já é uma mistura entre o PRI e o peronismo. O lado PRI é o de apropriar-se e usurpar os cargos do Estado, manipular e cevar-se nos fundos públicos. O lado peronista, decadente na Argentina, é o lado propriamente político, uma vez que o peronismo fincou raízes realmente populares e com isso manobrou o tempo todo. O PT tem a mesma raiz popular, mas esse lado sugere uma peronização do PT, ou seja, a inclinação pela cultura do favor, do clientelismo, da corrupção, uma mistura muito estranha, desagradável e politicamente regressiva.
Correio da Cidadania: Findo o primeiro turno, já começaram as especulações sobre as estratégias dos candidatos para o segundo turno, onde a candidata petista já deu claras demonstrações de recuo em alguns temas polêmicos, como, por exemplo, na questão do aborto. Como acha que vão caminhar os debates eleitorais do segundo turno?
Francisco de Oliveira: Vão continuar mornos. Eles vão tentar apenas encontrar motivos de perturbação para o adversário, mas nada de debater os grandes temas nacionais. Nem a Dilma e nem o Serra, a nenhum deles interessa esse debate. O Serra não pode fazer uma crítica cerrada ao Lula, com medo de perder mais popularidade; a Dilma não pode levantar temas importantes, com medo de perder o apoio do que resta da burguesia nacional e da grande burguesia internacional. Não acredito que saia algo interessante, portanto; creio que procurarão os flancos abertos dos adversários para tirar proveito eleitoral.
Correio da Cidadania: Vários setores de esquerda críticos ao governo Lula, e já há bastante tempo descrentes do chamado programa democrático popular, sentem-se em uma sinuca de bico neste segundo turno. Afinal, se o governo Lula não avançou em questões essenciais, como a reforma agrária, com Serra, nem mesmo o diálogo com os movimentos sociais tem sido possível. O que o senhor diria a estes setores neste momento?
Francisco de Oliveira: Eles têm absoluta razão nesse temor. Eu diria para que não esperem nenhuma facilidade de ambos os lados. Do lado tucano, porque estão ideologicamente comprometidos com tudo que é antipopular. Do lado lulista, não haverá abertura para os movimentos sociais a fim de se buscar uma nova estruturação do poder no Brasil.
A vitória do lulismo não é muito promissora, pois, no meu modo de ver, reforçará o estilo de governo que o Lula implantou nos últimos oito anos, a ser confirmado pela eleição de sua candidata, como se fosse a confirmação de que é disso que o povo gosta. Essa é a tese do André Singer, agora o principal intelectual a defender as posições do petismo e do governo Lula. Tudo seguro, sem conflito. Lembra um menino que dançava frevo em Recife e abria os bracinhos dizendo: "dá pra todo mundo, dá pra todo mundo". A mensagem do lulismo é assim, "tem pouquinho, mas dá pra todo mundo. Não precisa brigar, de conflito, porque dá pra todo mundo!".
Esse é o estilo de um governo muito conservador, mais do que se pensa e mais até do que os próprios tucanos supõem. É um governo muito privatista, mais até do que o do FHC. FHC privatizou as empresas; Lula, sobre essa tendência, empurrou o Brasil para o campo do capitalismo monopolista de Estado, no qual não há avanço e nunca se produziram bons resultados em política interna.
O André Singer andou utilizando muito o exemplo do Roosevelt, dizendo que o Lula é sua versão brasileira, esquecendo-se somente que o êxito da administração Roosevelt acabou com o movimento de trabalhadores dos EUA, levando à fusão das centrais sindicais que eram competidoras, e que viraram uma única confederação. E ironicamente, o maior país capitalista do mundo nunca teve condições de formar um partido de trabalhadores. Lá, os trabalhadores sempre foram a reboque do Partido Democrata. É disso que Singer esquece. Roosevelt foi um grande estadista, é verdade, impulsionador do capitalismo americano, mas acabou com o movimento dos trabalhadores norte-americanos. Se é isso que se deseja para o Brasil, então, tome-se lulismo.
A vitória da Dilma traria mais imobilismo. Ela terá muitos problemas, até porque a economia não vai surfar numa onda contínua de progressão como a existente nos oito anos de Lula, sobretudo no segundo mandato. As contradições crescem na medida em que o capitalismo se desenvolve. A tendência é subjugar e fraturar o movimento dos trabalhadores até ele ficar inerte politicamente, sem nenhuma expressão.
Correio da Cidadania: Nesse sentido do imobilismo a que foram conduzidos os movimentos sociais sob o governo Lula, o senhor comungaria, de alguma forma, com a idéia de que a vitória de uma candidatura escancaradamente conservadora como a de Serra seria mais benéfica para as lutas sociais e políticas a longo prazo, no sentido de chacoalhar movimentos paralisados e cooptados pelos anos Lula?
Francisco de Oliveira: Não sei. É uma pergunta interessante, mas difícil de responder, até porque a história pregressa dos tucanos é negativa a esse respeito. Pode haver diferenças pessoais entre Serra e Dilma, mas nada nos autoriza a pensar que uma vitória tucana abriria o campo das contradições e movimentaria mais o campo da luta política. Isto poderia ocorrer se o PT retomasse seu papel de transformação na história brasileira. Mas esse é um cenário tão ilusório quanto pensar que os tucanos possam ter esse impacto no movimento social.
Correio da Cidadania: Qual a importância e quais as chances de reconstituição de uma frente de esquerda de agora em diante?
Francisco de Oliveira: Ainda são poucas, porque, com o crescimento de algumas bancadas no Congresso, vai se deixar pouco espaço para a esquerda atuar. Nossa responsabilidade é tentar descobrir os novos motivos e questões que o povo possa ter e perceber na política.
Não vai haver descanso, folga alguma. A tendência é de se sufocar qualquer manifestação de insubordinação, de críticas. Mas a história caminha e surpresas são sempre bem vindas, além de muitas contradições que vão aparecer e reforçar o destino quase inarredável do Brasil de sua condição de país sub-imperialista.
Essa história de política progressista para a América Latina é uma farsa, pois dominamos o Paraguai, a Bolívia, não temos nenhuma política externa progressista, isso é uma mentira. E do ponto de vista interno, caminhamos para um capitalismo monopolista de Estado, implacável, de olho apenas nos grandes lucros. E vem aí o Pré-Sal, que pode ser um desastre, porque reforçaria estruturas capitalistas mais monopólicas no país... Não vejo nada de promissor.
Acho que a esquerda continuará com as mesmas divisões, uma frente de esquerda ainda não é visível, pelo menos no futuro imediato. Os partidos são todos pequenos e, primeiramente, têm de fazer um esforço extraordinário para sobreviver e ampliar um pouco sua penetração, porque o fogo de barragem sobre qualquer projeto crítico é enorme. E esse fogo de barragem não é só dos demais partidos, mas também da mídia. Que espaço os jornais deram para a discussão dos pequenos partidos? Já eram logo ridicularizados como nanicos, delirantes...
Os partidos pequenos da esquerda têm de fazer um esforço enorme para sobreviver, explorar todas as debilidades do sistema e fazer uma crítica que possa chegar ao povo.
Correio da Cidadania: Arriscaria fazer uma previsão para o segundo turno e, ademais, a projetar qual candidato faria melhor por nosso país?
Francisco de Oliveira: Acho que tudo indica que a Dilma ganha no segundo turno. Não acredito numa transferência maciça de votos da Marina para o Serra. Seus votos vão se dispersar entre ambos; portanto, o mais provável é que a Dilma se eleja presidente.
Mas não sei que governo ela fará, penso apenas na tentativa de continuar os governos do Lula, que na verdade será o personagem atrás do trono, que irá mantê-la com rédea curta. Até porque ela não tem muita experiência na política nacional, nem dentro do PT, e estará cercada de chacais por todos os lados.
Até mesmo pensando em seu futuro, se quiser retornar à presidência, Lula tem de proteger a Dilma, senão ela será estraçalhada na luta política miúda que agora vai se abrir no Estado. Quanto ao seu desempenho no governo, as linhas gerais indicam que ela só dará continuidade ao que o Lula implementou.
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.
Fonte: Correio da Cidadania.