i)
A questão habitacional em Joinville, há algum tempo, emergiu ao primeiro plano. As razões são várias, mas certamente as duas mais fundamentais dizem respeito, no plano nacional, ao lançamento do programa “Minha Casa, Minha Vida” e, no plano local, à luta e resistência dos moradores do Juquiá.
Essa questão tem um aspecto conjuntural e um fundo histórico bem próprios, que ainda exigem uma pesquisa aprofundada que seja capaz de reconstituir o processo de ocupação da cidade desde sua fundação e a constituição de movimentos de resistência. Esse texto, enquanto “notas”, tem apenas o objetivo de passar em revista de algumas questões, portanto nada mais é que o esboço de uma pesquisa de fôlego futura.
ii)
A questão habitacional pode ser dividida em dois campos de estudo, distintos, mas intimamente relacionados. Um deles trata da questão da especulação imobiliária, do solo enquanto mais uma mercadoria capitalista no jogo de valorização do valor. O outro campo é aquele que versa sobre o déficit habitacional, as maneiras através das quais as pessoas conseguiram – ou não – um teto para morar e constituíram-se enquanto sujeitos. Metodologicamente, há como que duas Histórias: a história do Capital e a história dos trabalhadores.
iii)
A crise econômica mundial que assola o Brasil e o mundo teve efeitos razoáveis sobre Joinville. Um primeiro efeito, mais imediato, foi a perda de mais de 4500 empregos formais até agosto de 2009 – sabe-se-lá quantos informais. Na média duração, porém, talvez a crise tenha efeitos mais duradouros. A crise teve fortes consequências no campo financeiro, o que deslocou investimentos para outros meios de valorização mais seguros. Ainda, em um país sem terremotos, o imóvel é um dos melhores investimentos.
No último período a especulação imobiliária se tornou o mais rentável investimento na cidade. Enquanto quem investiu na bolsa perdeu quase 20% e quem investiu na poupança ganhou apenas 8%, aqueles que investiram na especulação imobiliária ganharam, em média, 37% (AN, 12/07/2009). Dentre as localidades mais valorizáveis estão 1. a via gastronômica, com alta circulação de valores, 2. os bairros Atiradores e Anita Garibaldi, que sofrem cada vez mais um processo de verticalização, além da nova sede da Sociesc e o novo Angeloni, 3. a zona oeste (Vila Nova, São Marcos, Nova Brasília) por possuírem um acesso viário ainda não saturado, além de serem permeáveis a investimentos populares e 4., por fim, o Bom Retiro, graças a construção do novo shopping e da proximidade com as universidades.
O capital financeiro se deslocou, propriamente, do setor financeiro e a valorização passou a se concentrar no setor imobiliário. Esse será possivelmente o efeito mais duradouro da crise em Joinville: a crise irá remodelar o espaço urbano com vistas a essa espécie de acumulação, criando novos loteamentos e verticalizando as moradias.
iv)
O programa “Minha Casa, Minha Vida”, lançado pelo governo federal, é o corolário da especulação. Para a faixa de renda cuja cobertura do programa é a mais elevada (de 6 a 10 salários mínimos) prevê a construção de 200 mil imóveis, de um universo deficitário de 189 mil, ao passo que para a faixa economicamente mais debilitada (0 a 3 salários) construirá 400 mil imóveis, de um universo deficitário de cerca de 7,1 milhões. Essa discrepância, sob o ponto de vista da valorização do capital, é plenamente justificável. O plano habitacional farsesco visa a estimulação da economia por meio da construção de moradias, gerando empregos em massa na construção civil, em que pese o fato de serem mal-remunerados e via de regra precários. Isto é, cria empregos para os mais despossuídos e desloca os investimentos para um local seguro para a alta burguesia.
v)
Em Joinville há, segundo números ainda informais da Secretaria de Habitação, 19 mil famílias sem moradia. Cerca de 3600 famílias vivem em ocupações, concentradas sobretudo no Jardim Paraíso, Adhemar Garcia e Paranaguamirim (AN 14/07/2009). Há também por volta de 9600 imóveis considerados desocupados que servem à especulação.
Quando em terrenos públicos, como o caso do Juquiá recentemente em Joinville, as ocupações representam uma forma de luta cujo conteúdo essencial é de resistência ativa ao capital. Isso porque a ação de ocupar contesta a prerrogativa política, jurídica e econômica de um setor da sociedade, as imobiliárias, de determinarem quais terras podem ser objeto de moradia. O que está em jogo é a quebra de hegemonia de um setor importante da valorização do capital. Isso ocasiona um verdadeiro curto-circuito, em pequena escala, é verdade, no sistema imobiliário, na medida em que nega o solo enquanto uma mercadoria. O curto-circuito é mal disfarçado, por exemplo, na fala banalmente ecológica do empresário Namir Zattar, dono de imobiliária, ao exigir que famílias sejam retiradas do mangue por razões ambientais (Diário Catarinense, 24/02/1988). O real interesse é astutamente econômico, pois pessoas que se negam – bem entendido, “negação objetiva”, pois trata-se mais de uma imposição social de sobrevivência que de uma escolha política, muito embora o ato tenha significações políticas claras – a comprar imóveis põe em causa o modelo de ocupação do solo, essencialmente capitalista.
A ocupação em terrenos implica mais em resistência que em ofensiva. As condições para uma ofensiva socialista ainda não estão dadas. No entanto, a ocupação de terrenos privados implica em questionar a distribuição da propriedade, muito embora ainda permaneça no regime da propriedade.
vi)
Ao que sobrou da esquerda cabe pensar a questão habitacional sob um prisma de longo prazo. Esse prisma é a visão de sua própria reconstrução, processo esse certamente de longa duração, o que implica pensar programática e organizativamente.
Em primeiro lugar cabe notar que a cidade é um espaço privilegiado da luta de classes, em sua desigualdade sócio-espacial. As razões disso, se não são resultado direto, ao menos dizem respeito a uma concepção largamente partilhada por uma esquerda de um período anterior. A ligação com um projeto desenvolvimentista abraçado pelos setores mais representativos da esquerda significou a adesão à hegemonia burguesa. O Brasil, nunca é demais lembrar, foi o país que mais cresceu economicamente no século XX e isso não trouxe melhoras sociais. Ao contrário, foi esse crescimento que implicou em grandes fluxos migratórios, inchaços urbanos, concentração de terra e desigualdades espaciais. O projeto desenvolvimentista enquanto projeto revolucionário, se não foi, deve ser liquidado, pois é contra seus produtos que lutamos hoje.
Em segundo lugar, a luta pela moradia retoma o vínculo orgânico entre a esquerda e os setores mais marginalizados do proletariado. A situação de dependência extrema, miséria cultural e econômica, no entanto, serve à tentação do projeto eleitoral, de fácil pregação e de difícil efetividade. A luta de moradia, ao contrário, não deve significar a retomada das piores tradições parlamentaristas e eleitoralistas da esquerda, mas sim às suas melhores tradições organizativas democráticas, que apontem para uma saída revolucionária, certamente ainda não visível, mas que deve ser construída enquanto objetivo.
Por fim, embora significativa parcela dos moradores de ocupações seja vinculada aos trabalhos mais precários e informais, há também setores operários que vivem nessas condições. Boa parte de uma esquerda mais “tradicional” segue com seus preconceitos contra o “lúmpen”, mas se esquece de compreender as novas configurações da classe, o que as faz desprezar as ocupações urbanas. Se o elo com a fábrica foi destruído, ele pode ser refeito com base em outras lutas e uma das mais próximas aos trabalhadores permanece sendo a luta por moradia. Essa ligação orgânica pode ser reconduzida pela beirada do sistema de valorização.
Hernandez Vivan